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Dom, Maio

por Telma Brilhante

Vital Corrêa de Araújo (Vertentes/Pernambuco) é poeta, escritor, jornalista, auditor do Tesouro, bacharel em direito, com curso de História e Filosofia,

professor do curso médio, conferencista, tradutor, especialista em Jorge Luís Borges e Presidente da União Brasileira de Escritores em Pernambuco (UBE-PE).

 

O convívio com Vital Corrêa de Araújo aconteceu a partir dos encontros literários e depois quando me integrei à União Brasileira de Escritores, ao fazer parte do quadro da diretoria nessas duas últimas gestões.

A partir do convite de Cida Pedrosa para fazer a entrevista – a quem muito agradeço – despertou-me o entusiasmo para desvendar o universo místico do poeta. Devido à singularidade de seus poemas, tornou-se objeto de estudo do professor Sébastien Joachim, que o tem levado para outras Universidades. Vital é um poeta que possui o dom, a facilidade de transcrever imagens que fervilham em sua mente, criando um universo paralelo com significações sui-generis.

Poeta carismático que se diz hermético por opção, na poesia elege o sensorial, em detrimento da compreensão, meramente supérflua, aleatória, do poema.

Há muito que perguntar, há muito que refletir sobre as questões aqui abordadas. Então, mãos à obra.

O poema descritivo envolvendo um aspecto da natureza ou do espírito parece não ter guarida no seu trabalho. Ou tem?

A finalidade ou o objetivo da poesia, como representação, descrição, imitação da natureza, do mal (aparente), do sentimento ou reprodução da emoção, capturada na tranqüilidade ou no desespero, pela palavra, cessou, não tem mais validade, desde o final do século XIX.

Livros publicados: Título provisório, Burocracial, Gesta pernambucana, As flores da urbe, Coração de areia, Gide ou o desejo, A cimitarra e o lume (rubais), Flauta de pássaro (haicais), 50 poemas escolhidos pelo autor (reprodução, por Waldir do Val – editor da Revista Poesia da coleção famosa de Simeão Leal – Cadernos MEC, anos 50) editora Galo Branco – Rio de Janeiro; Só às paredes confesso, Palpo a quimera e o tremor. Inéditos: Ave sólida, Ora pro nobis Scania Vabis, O sal contempla o Atlântico, Bando de Mônadas, Atanor, Livro dos 4 cavaleiros do apocalipse da palavra, Lugar da morte, Falo, Ápeiron (estes projetados para publicação até 2012); Minha poesia (ensaios sobre minha poética), Crepúsculo do pênis, Sexo dos anjos: como reconhecer anjos / pelos testículos cândidos; Carta de Nassau aos recifenses 400 anos depois; Leituras escritas e outros ensaios (ou pequenas crônicas literárias), apresentações pontuais de poetas pernambucanos.

 

Insisto. Por que uma posição tão drástica, posicionamento que vai de encontro ao que muitos pensam da poesia?

A poesia exime-se, cada vez mais, ao longo de sua última grande revolução (estética), a partir de 1880, da função ou preocupação de copiar e exprimir o que existe, e concentra-se em criar e exaltar um mundo mais real e mais verdadeiro: o sonegado pelo poder da aparência e do simulacro. A poesia dita moderna considera as coisas como signo, fluxo, reflexo e síntese do que é  humano e não meramente natural. Nada do que é humano me é estranho, disparou Terêncio. Realidade / verdade não são paralelas (que se encontrem somente em algum longínquo infinito), mas são comunhão (faces da mesma moeda cósmica), e o elo (ou a interface) da poesia as liga.

 

Vital, você afirma que a poesia não é o meio certo de dizer. Se o escritor quiser dizer algo use a prosa. Por quê?

Isso de o que quis dizer o poeta, que pressupõe que o leitor exige a melhor compreensão possível da leitura poética e, portanto, o melhor e mais explícito modo de dizer poeticamente do lado do autor, é uma falsa questão. Rimbaud; “o que quis dizer no meu poema está dito nele literalmente e em todos os sentidos, reais ou imaginários.”

 

Não há aí uma contradição, desde que o poeta escreve para que o leitor entenda (ao menos em parte)?

Recorro a Valéry que (arre)matou a questão: “a poesia intima-nos a transformarmo-nos muito mais do que nos convida a compreender”. Traduzo: a poesia é (ou serve) mais para nos compreendermos do que para sermos compreendidos. Isso desarma bomba, alivia temor ou desgaste do poeta que escreve o poema e se coloca na posição de leitor, buscando compreender o que diz, tarefa que desqualificava o poema, o produto sendo uma quantidade de palavras arranjadas sob prioridade prévia e necessária da compreensão, o que equivale ao carro na frente dos bois.

Por que uma mudança tão radical no modo de compreender a poesia?

O axioma de D’Alembert de não reconhecer como bom um verso se não fosse excelente em prosa, a revolução da modernidade (além da Francesa) modificou: não será boa prosa qualquer escrito que não for melhor em verso.

 

Na sua opinião, como é elaborar um poema?

O poema não se mede pela capacidade de descrever (analítica, abstrata ou simbolicamente) uma figura (objeto, tema, sensação, sentimento) ou ao modo de uma explanação didática ou explicitação de um conteúdo moral, pessoal, educativo. Ou seja, não vale pela perfeição como representa ou explica. Atua sobre nós (autor e leitor) como um ser real, como o mar, o sol ou o vento. Ele é belo, não como uma demonstração, mas como uma árvore. E Pierre Reverdy completa: o poema não visa emocionar pela exposição, mais ou menos patética de um eco informativo, noticioso, mas cirar no poeta e no leitor uma emoção tão ampla, tão pura, como o podem fazer a tarde, o desenho do crepúsculo, um céu crepitante de estrelas, o mar calmo ou encapelado ou o imenso drama mudo da luta entre as nuvens e o sol, pela taça do ocidente.

A propósito, quando perguntaram a Rimbaud o que ele quis dizer num poema, a resposta traduz o dito acima: quis dizer o que está dito literalmente e em todos os sentidos, possíveis e imagináveis.

Ao decurso da evolução da poesia, desde o último quartel do século XIX, as palavras (do poema em verso ou prosa) têm cada vez menos um valor expressional e cada mais um valor criador. A linguagem poética já não tem que imitar a natureza ou explicá-la à moda de um discurso prosaico ou descrição realista, mas fazer surgir uma realidade nova. As palavras deixam de ser somente (ou são além disso) sinais convencionais para participar  nas próprias coisas. A linguagem já não é um meio, é um ser, disse Jacques Rivièry. O poema não quer significar, mas ser.

 

O que é a poesia para você?

A poesia é uma potência e sua função é extrair das palavras mais do que elas contêm aparentamente, mais do que elas portam de significados e resíduos de sua história filológica. Cabe à poesia retirar, arrancar das palavras mais do que eles trazem ou dizem, tirar delas, como o sílex sob percussão (choque, roce), possibilidades imprevisíveis ou inusitadas significações adormecidas ou insuspeitadas e conotações novas (ou denotações (re)inventadas), tudo o que elas continham (ou contêm) em potencial atualizados pela modelagem, força plástica, forma, capacidade de prospecção e expressão da poesia.

Enfim, as coisas significam (para o homem) mais do que são. Ou não são senão uma parte daquilo que elas significam. Isso é vital para o trabalho real do poeta. O real contém mais do que a ação imediata e cotidiana (prosaica) dele se tira, mais do que em suas veias pulsa, e infinitamente mais do que o hábito e o uso comum ou ordinário (inercial), convencional, superficial, nele têm depositado. O real é inesgotável (inclusive em suas facetas surreais ou mesmo mágicas e místicas).

 

Qual seria, então, digamos,  a missão da poesia, se é que há alguma?

A poesia tem por missão captar, aumentar, dilacerar, ampliar as significações do todo (e assim cada palavra ou sintagma, frase ou verso que projetem ângulos ou feições desse todo), para transmitir (ou exprimir) as revelações e assim comunicar o invisível do conteúdo pelo visível da forma. Isso faz parte do processo de humanização ou mesmo de hominização do homem. Holderlin confirma: o poeta funda o mundo. Se Deus criou o mundo para se curar, o poeta para o mudemos.

Será que daria para explicar melhor o que são essas revelações?

No decurso da evolução recente da poesia, desde o último quartel do século XIX, as palavras (do poema em verso ou prosa) têm cada vez menos um valor expressional (ou informacional) e cada vez mais um valor criador. A lingaugem poética já não tem que imitar a natureza ou explicá-la (perdeu esse encargo ou peso) à maneira de um discurso prosaico ou descrição (relato explícito, lógico, claro), mas fazer surgir uma realidade nova (extraída a ferro e a frio) do potencial infinito da linguagem. As palavras deixam de ser somente (ou são além disso) sinais convencionais – com denotações normais e baixas conotações – para participar nas próprias coisas.

A linguagem já não é um meio, é um ser, disse Jacques Rivière. Portanto, a palavra (poética) tem por tarefa não copiar as coisas e adaptar-se a elas, denotando-as, mas, pelo contrário, fazer romper as barreiras que inibem os significados e esgotam as definições e delineamentos aparentes, limites e sentidos usuais ou banais das coisas.

 

Ao que me consta, você é avesso à velha tradição da rima no poema. Por quê?

A emenda salva um soneto, mas a rima não salva um poema. Geralmente, condena. É que o recurso da rima é redimensionado de tal modo que poesia é rima. Isso foi. Rima seria um ornamento que vira essência? A parte que sonha ser o todo. Rima e métrica é música de trena. O conceito de métrica se torna um obstáculo a vencer, uma necessidade apodítica. E o de rima? Proust afirmou que “a finalidade da rima é positiva (e criadora) porque força os bons poetas a encontrar, garimpar verdadeiras belezas”. Será? Ainda?

O problema é que escandaliza a mim ver a montanha de rípios que se amontoam nos versos. Rípio é pedra miúda com que se enchem os vãos deixados pelas grandes pedras assentadas numa construção. É cascalho, calhau. Remendo. Muitas vezes, se despreza o poema para encontrar uma rima adequada. Quanto mais rica, mais rípio.

E o verso livre?

O verso livre não é uma licença – anomalia, acidente, recurso esquerdo – capaz de abolir todas as exigências formais da versificação, mas, ao contrário, um meio de expressão, uma nova forma que se buscou, quando todas as anteriores se desgastaram e perderam a valia, fazendo-se fáceis e rotineiras, com o prolongado uso (e abuso). Sou um poeta livre. Nunca cometi métrica. Nem sequer aprendi versificação. Como Moréas, quebrei as cruéis cadeias da versificação. Não sou, então, nunca, um versificador. César Leal em ensaio publicado no Diário de Pernambuco, sobre um livro meu, disse: “Vital Corrêa de Araújo, em Coração de Areia, confirma a regularidade do ritmo que tem feito dele poeta pernambucano com maior domínio do verso livre”.

Mas a que escola, a que corrente, de qual estrutura literária você lança mão enquanto poeta e escritor?

Nem sei se já sou poeta. Sou mais uma ilha. Meu modo livre me isola. Acho mesmo que minha poesia é errada, fora do ninho, estranha, angular, pouco simétrica, nada arrumada. Sou anti-corrente, vou a contracurso, voo contra a maré: para minha “poesia” só há contra-mão. Só escracavinhando muito em meus quinze livros publicados, desde 1979, é que se pode achar um ou dois poemas como é a regra. Poesia formal, para mim, é sânscrito; temática de poema, não sei o quê é. Por isso nada tenho a explicar. Nem iriam entender. Sou pária ao extremo, ímpar (que é menos ofensivo). Minha poesia nem anuncia nem denuncia. Sei que não sou importante como poeta. Me coloco no fim da fila dos 1.600 poetas pernambucanos vivos. Escrevo porque ninguém me lê. E como duvido muito da capacidade estética dos prováveis leitores, me considero bom poeta (para mim). Só eu penso assim. Nunca publiquei um livro por desígnio próprio. Todos tiveram a publicação organizada por amigos e editadas em face de prêmios ou ofertas. Só o último Só às Paredes confesso, que Arnaldo e Inês, da Bagaço, me pediram ou melhor, lutaram pelos originais, ganhou o prêmio da Academia Pernambucana de Letras, depois (2007).

É certo que o professor Sébastien Joachim publicou em francês (por editoras da França e da Romênia), ensaios sobre sua poesia?

Sim. O literator (professor de alta poesia), professor Sébastien Joachim. publicou textos de conferências que ele fez no Canadá e em Paris sobre minha poesia, por editoras da Bahia, de Paris e da Romênia. Ele analisou três livros inéditos ainda (ou sempre): Simulacro, Escuras e Diatribe. Que, confesso, deixei misturar, perdi os disquetes – e como não tenho computador, é complicado reuní-los para publicar. Tinha fixação por disquetes. Usei-os até a exaustão (deles e minha). Mais de 200 não abriram mais. Fecharam-se para sempre, embutindo poemas de 10 livros.

(Intervindo,m diacronicamente, na entrevista, adito que o Professor Sébastien Joachim, publicou O destino poético de Vital Corrêa de Araújo (edições Bagaço/IMC).

A propósito, o Professor Joachim diz que a minha intenção é derrubar o significado. E é isso que persigo. Costumo dizer que se algum leitor disser que entendeu parte de um poema, anoto e depois mudo, altero a parte fácil, frágil, que levou o leitor a concordar facilmente, a tão passivamente saborear, deglutindo-o irrefletidamente.

Vital, quanto à vaidade literária de escritor, como você lida com isso?

A maior prova de desvaidade minha é que não lancei em Recife na condição de Presidente da UBE, os dois últimos livros de poemas: Só às paredes confesso e Palpo a quimera e o tremor.

Quando foi lançado o penúltimo, no Palácio das Princesas (lançamento coletivo), faltei. Bem como não fiz festa de posse nos meus últimos dois mandados da UBE. Achei que a festa do primeiro foi suficiente, desde que tais festejos apenas fazem crescer o ego (que, no meu caso, já está super-dimensionado).

 

* TELMA BRILHANTE é poetisa, cronista, contista, faz parte da União Brasileira de Escritores e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.

(julho de 2007)

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Murilo Gun

REVISTAS E JORNAIS