03
Dom, Ago

destaques
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Não há porque duvidar

da severidade humana

mas porque duvidar

da humanidade do homem

 

cercado pela luxúria da ganância

e libidos aborrecidas no lábio

 

testemunha da impotente cópula

do remorso com a arrogância

 

porque poucas marcas restam

doeliotiano itinerário invencível

 

pelo peregrino Tâmisa (da morte pela água)

portando o sermão de fogo (no punho do verbo do tigre lampejo)

 

numa noite de duvidosa lua e ar árido

céu enervado de nuvens terrosas.

  

Apetite não pode

satisfazer-se só pela carne

 

saciado como a matéria o é

pela mecânica ou pelo intervalo

 

ou pelo espírito de cal sutil coberto

ou cinzenta nuance apocalíptica

 

é o que se lê da folha que sibila

abandonou na tarde (e Tirésias viu como desígnio

do céu olímpico e pálido)

 

durante o enterro do desespero

que rouxinóis escoltavam

féretro orlado de músicas de relva.

 

A catacumba era lírica

e os mortos por água

poluída hirtos estavam como um inverno

(e observavam a tarde se decompondo abandonada).

Algum cadáver

que plantaste nalgum jardim, leitora

 

não ou tão pouco casta

irá brotar e talvez dará

flores escuras

 

(e círios acesos irão

luz de alumínio lançar sobre cadáver)

 

cão e ursa juntos irão

desenterrar entranhas nuas

 

para consolação do futuro

que nos escapa entre dedos como água

 

num jardim de lilases ilusórios

e jacintos agonizando

 

só a claridade do remorso

e a chama (já extinta) dos mortos

 

permanecem entre covas  de cravos

e extenuadas hastes de dálias deliquescendo.

 

Cada vez mais que extirparmos

o atemporal de nossas veiascruas

(e vidas menos)

 

cada vez que quebrarmos com primor

os dentes da temporalidade autêntica

 

mais a alma se desola

mais a sombra se arroga

   

se a certeza da salvação se reduz

o medo de ser aumenta

multiplica-se o temor de viver

 

(quando é o morto que nos enterra

é que viver não tem sentido).

 

Futuro em breve será passado

criança será osso abandonado.

 

E a infância data protendida

destroço de uma vida.

  

O conhecimentos do que virá

será o teu martírio, leitora curial curiosa

 

ahoranão mais chegará a ti

poisnão (ou já) desvelaste o maquinismo

 

da vida que é tempo (de pedra)

sepultado numa ampulheta corrupta

 

seao tempo cronológico

sobrepõe-se o simultâneo

 

  perdeste teu sentido horário

leitora vazia (ou acrônica)

 

e não passas do trânsito.

 

Se o tempo é convenção

a morte é produto da mente.

 

Se Kant estuprou a camareira

(em Konigsberg) por que Lampe não o denunciou?

 

O passado vive em cada rosto

existe e é minucioso trator da cútis

e o futuro nunca será promissor

mas estado de perda, dano, medo.

 

A natureza humana é nossa derrota

(alienada como um anjo ou uma porta).

 

Vício a estrada mais larga

todo o salubre mera via estreita

 

dor companheira devota

temor ubíqua presença.

  

Vida merece ser vivida (não vívida)

morte único endereço certo.

 

(Entre as duas fatais datas

em tua lípide sulcada

 

leitora impotente

prefiras a última

que é a definitiva).

 

E quanto menor o intervalo

menos dores te destinasses

mais perto teu ser estará (de não ser mais - ou menos)

 

Teu estar foi-se

ficou o cansaço

de ser (nada).

Murilo Gun

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