14
Ter, Maio

destaques
Typography
  • Smaller Small Medium Big Bigger
  • Default Helvetica Segoe Georgia Times

O valor da poesia é negado três vezes. Pelos muitos que pensam à Sartre, para quem o escritor lida com significados (acontecimentos que aborreciam a largo Valéry), claros, nítidos, ou seja, compromissos perante a vida (política e social).

A poesia, como a pintura e a arte em geral, “emprega palavras que não são signos. Usa, em verdade, palavras-objeto”. (Sartre). Ou palavras-fim. O desvio de tal raciocínio se dá quando afirmam que o escritor deva se preocupa com o outro (e não o si mesmo). Deva olhar o homem, quando o compromisso não é com o indivíduo, a espécie, mas a humanidade (em si e no todo).
Para o poeta, o significante é um fim em si mesmo. Um complexo. As palavras (por sinal, um texto excelso de Sartre) se esgotam em sua própria imagem, o saber é imediato, terminal. Na prosa, palavras não são convertidas em imagens (servem meramente de veículos, não valem em si), mas em signos representando algo que exista além delas mesmas (das palavras), ou seja, um referente objetivo (correlativo?) que transcenda a forma-palavra.
Responsavelmente, Sartre não considera, como Platão, o poeta perigoso, mas ocioso, e para salvá-lo de si mesmo, condena-o (não à ação), porém ao limbo da poesia pura, ao paraíso das imagens brancas ou ao reino da imaginação dialética, entre outras; ao éden irresponsável e mágico do gozo das palavras, pelo amor de jogar com elas.
A grande maioria das pessoas, aí incluindo os que aleatoriamente, ou por puro lazer, por esporte sofisticado (mas nunca por prazer) ou por mero fair-play se obrigam à leitura de ficção, de literatura em geral, este universo ou fração não considera (felizmente ou não) a poesia perigosa. (São uma maria vai com as outras do bem estético). Pelo contrário, a consideram bem inocente (tipo inocente-útil). Mas a têm como totalmente (não totalidade) inútil, algo bem insignificante (em signo de ficar por fora), nas duas concepções do termo. O que diz nada e o que nada serve. Pura e insígne insignificância (insistente e) total.
O desprezo do poeta, a condenação da poesia, tanto como inútil quanto perigosa (inocente, ingênua) para os bons negócios (que é coisa de homem, não de poeta), repetiram-se, ao longo da história metafísica do homem, em vária situação e ocasião diversa, valendo situar duas, além de Platão (e sua larga sombra).
Santo Agostinho, poeta quando jovem – e ateu, condenava os poetas em nome da fé (Platão o fazia em nome da razão ou ordem racional) e afirmava que a poesia representava perigo “porque quanto mais (poético mais verdadeiro) nos comovemos por tais coisas (isto é, as paixões vertidas através das palavras) menos estamos (disponíveis à fé) imunes às emboscadas dessas emoções (que nos tiram do sério da religião). Emoções tais que nos retiram (de nós mesmos, catarticamente operatórias) não só a razão – conforma Platão, mas sobretudo a fé”.
Em dias recentes, essa ambiguidade se apresenta em toda sua terrível dramaticidade na obra de Kierkegaard (teólogo e poeta), que escreve: “A poesia só proporciona uma reconciliação imperfeita com a vida, porque, em determinadas condições ou aspectos, assume formas e proporções perigosas, especialmente, por exemplo, quando debruçamos a atenção no ombro da poesia ou de arte que nos atraem, com seu poder sedutor quase absoluto, e deixamos de contemplar a realidade tal como é (e não como o poeta pinta, esse artista soberbo da palavra), desviando-nos assim das coisas humanas e divinas”. Acrescentaria eu: das coisas comerciárias, sobretudo. Platão e Santo Agostinho de mãos dadas na modernidade, reencarnados no escandinavo.
Ramón Xirau completa: “o poeta sofre – em Kierkegaard teólogo poeta”. “O sofrimento deste provém de que o poeta sempre quer ser religioso e sempre para tal fim caminha equivocado (ou ambíguo, o que seria bem poético), o que o torna poeta e “et pour cause” está ou fica desgraçadamente enamorado de Deus”. (Diário, 1845, Kierkegaard). Xirau segue: “de origem divina e de vocação religiosa (salvífica), o poeta se desvia de Deus, não porque se contente com as aparências (líricas ou abruptas ou mesmo banais) do mundo, mas porque absolutiza a palavra poética”. (E a eleva além da palavra religiosa, a um patamar bem demasiadamente humano).
O amor pela poesia coincide com amar o sagrado: conclusão magistral do crítico e poeta mexicanos Ramón Xirau.
A angústia do poeta que quer porque quer se aproximar (apaixonar) de Deus equivale à de kierkegaard pela divindade: temor sagrado que faz tremer.
Mas por que os homens religiosos precisam negar o que trazem dentro de si? Porque a poesia pertence ao domínio da ilusão (e, portanto, do incrédulo total).
Outros consideram a poesia plena de significações vazias e arrodeamentos inúteis (ou rodeios minotaurinos).
Se ao significante não corresponder um significado preciso e imediato, tudo está errado. Não tem valor (comercial e portanto nenhum). Tal poesia insignificada é rodeada de perigos ao homem comercial, sério, movido pelo diesel valioso da alma monetária, ponta de lança da evolução hominídea. O tal poeta sábio sábio é um desastre negocial.
Mas o posicionamento (quase divo, que excele) é o do mais sagrado dos poetas, Horderlin, que disparou á queima alma: “A poesia é o mais perigoso e o mais inocente dos bens de que dispõe a humanidade”.

Murilo Gun

 
Advertisement

REVISTAS E JORNAIS