Não será menos um enigma esta folha
que a de Meus livros sagrados
nem aquelas outras que repetem
as bocas ignorantes,
julgando-as de um homem, não espelhos
obscuros do Espírito.
Eu que sou o É, o Foi e o Será,
volto a condescender com a linguagem,
que é emblema e tempo sucessivo.
Quem brinca com uma criança está a brincar
com algo próximo e misterioso;
quis brincar com Meus filhos.
Estive entre eles com assombro e ternura.
Por obra de magia
nasci de um ventre invencível.
Vivi enfeitiçado, prisioneiro de um corpo
e da humildade de uma alma suprema.
Conheci a memória,
essa moeda que não é nunca a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do futuro incerto.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne,
os lentos labirintos da razão,
a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz.
Bebi o cálice até às fezes.
Vi por Meus olhos o que nunca vira:
a noite e as estrelas.
Conheci o puro, o arenoso, o áspero, o diferente,
o sabor do mel e das maçãs,
a água na garganta da sede,
o peso de um metal na palma da mão,
a voz humana, o rumor de uns passos na erva,
o cheiro da chuva na Galiléia,
o alto grito dos pássaros.
Conheci também a amargura.
Encomendei esta escritura a um homem qualquer;
nunca será o que quero dizer,
mas não deixará de ser o seu reflexo.
Da Minha eternidade estes signos caem.
Que outro, não o que é hoje o seu copista, escreva o poema.
Amanhã um tigre serei no meio dos tigres
e pregarei a Minha lei à sua selva,
a uma grande árvore na Ásia.
Às vezes penso com saudade
no olor dessa carpintaria.
(Elogio de la Sombra)