03
Dom, Ago

destaques
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 Não será menos um enigma esta folha

que a de Meus livros sagrados

nem aquelas outras que repetem

as bocas ignorantes,

julgando-as de um homem, não espelhos

obscuros do Espírito.

Eu que sou o É, o Foi e o Será,

volto a condescender com a linguagem,

que é emblema e tempo sucessivo.

Quem brinca com uma criança está a brincar

com algo próximo e misterioso;

quis brincar com Meus filhos.

Estive entre eles com assombro e ternura.

Por obra de magia

nasci de um ventre invencível.

Vivi enfeitiçado, prisioneiro de um corpo

e da humildade de uma alma suprema.

Conheci a memória,

essa moeda que não é nunca a mesma.

Conheci a esperança e o temor,

esses dois rostos do futuro incerto.

Conheci a vigília, o sono, os sonhos,

a ignorância, a carne,

os lentos labirintos da razão,

a amizade dos homens,

a misteriosa devoção dos cães.

Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz.

Bebi o cálice até às fezes.

Vi por Meus olhos o que nunca vira:

a noite e as estrelas.

Conheci o puro, o arenoso, o áspero, o diferente,

o sabor do mel e das maçãs,

a água na garganta da sede,

o peso de um metal na palma da mão,

a voz humana, o rumor de uns passos na erva,

o cheiro da chuva na Galiléia,

o alto grito dos pássaros.

Conheci também a amargura.

 

Encomendei esta escritura a um homem qualquer;

nunca será o que quero dizer,

mas não deixará de ser o seu reflexo.

Da Minha eternidade estes signos caem.

Que outro, não o que é hoje o seu copista, escreva o poema.

Amanhã um tigre serei no meio dos tigres

e pregarei a Minha lei à sua selva,

a uma grande árvore na Ásia.

Às vezes penso com saudade

no olor dessa carpintaria.

 

(Elogio de la Sombra)

Murilo Gun

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