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Dom, Ago

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Admmauro Gommes, Poeta e professor de Teoria Literária da FAMASUL - (Palmares -PE)

            Vital é um poeta pândego (pan de ego!). O mundo é observado por ele como uma cachoeira risonha, sempre em movimento. Da inconstância das águas nasce sua poesia que é informe, maleável, desigual e contraditória. Estrangula o sentido dos vocábulos quando arrebenta as palavras batendo nas pedras, parede-lâmina do papel.

            Célere vate, Vital evita metáforas mortas, aquelas sem força, catraca gasta de tanto uso. Vital Corrêa de Araújo ri de todos e de todos os métodos das poéticas momentâneas, filiadas a correntes temporárias. Para ele, a poesia é sempre atemporal, fugaz, indoméstica, bravia, descendo a cascata metafórica, desconectada de pieguice, mas surpreendente e inusitada. Vital ri da arte de fazer poesia, e dos que se alucinam pensando dizer o que dizem. Chega a gargalhar de si mesmo. Ri e ironiza a lógica das coisas, pois sua poética encontra-se na ilogicidade semântica e carnavaliza as sacralizações do verso simples. O poeta vê o mundo de uma forma diferente e anárquica. É por isso que ele se engasga e não diz nada que seja compreensível diante da natureza que contempla e da vida que vê escapar das mãos.

            Escreve muito, quase ininterruptamente, fonte jorrando ideias como hemorragia que não estanca. Um verdadeiro mestre na arte de captar o absoluto sentido do ser, embora intraduza o que pressente, como quem guarda um segredo por trás da visão cansada de ver mesmices. É uma espécie de Narciso às avessas: nenhum espelho lhe traduz. Um naipe sem cópia. Apenas um original, indecifrável como Esfinge, finge não fingir.

            O pândego encontra sempre um motivo para ri do imediato, do constante e do imutável. Vital se contradiz, firma-se, reafirma-se, muda, volta, vem, vai e... enfim, não usa a mesma forma para escrever um poema pela segunda vez, como as águas da cachoeira, volúvel, irradia uma beleza literária a ser contemplada forçando os neurônios, sem decifração. Rápida poesia que não se fotografa. Orgulha-se quando percebe que não está sendo entendido através de seus versos.

            Avesso a (pre)conceitos, inaugura a linguagem do fim dos tempos, caótica, confusa: recolhe os ossos de Murilo Mendes e os revigora, alma visionária que não cabe em si, nem lá, nem dó. Criador esquisito. Estranho. Cultor da deformação poética e da exposição do verbo que oscila entre a carne e o barro. Destarte, escreve uma poesia que não vem do coração, quando diz: “coração coleta tempo/válvula de músculo, bomba/ não ampulheta de areia vândala.” Para ele, apenas músculo que trabalha mecanicamente conduzindo o sangue. Sua tinta vem do cérebro, de onde se derramam consciência e inconsciência e dessentimentaliza o olhar piegas.

            Se ele usa o sentimento para escrever? Neste ponto, emparelha-se ao que disse Fernando Pessoa: “Sentir? Sinta quem lê!”        Mesmo não sendo possível tal condição diante de VCA, a intradução do sentimento beira o inacessível e é algo mais profundo do que derramar algumas lágrimas de saudade. Saudade todo mundo tem, poesia não.

            Poesia vem mais do átomo do que do íntimo. Está no lixo de Manuel Bandeira (o bicho homem comendo detrito na imundície do pátio); nas lagartixas de Manoel de Barros (que têm odor verde), na barata de Kafka (sujando a branca humanidade de horrorosas manchas), até no não-lugar de “J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história” de Carlos Drummond de Andrade. Ela brota em todo canto, só não do coração, instrumento de uma nota só, insensível a veia poética até que “se desfibra e stop,” sem memória, nem alma.

            O sentir se desnorteia na expressão do verbo: “Grito de pedra/ relâmpago de água/ atravessam a palavra” (VCA). Diante dos versos “Ratos amam ameixas abertas/ e álgebras de estrelas distraídas”, ouve-se Vital: hhhhhhhhhhhh! E continua “se a leitura (do poema) não for uma busca do sentido perdido/ então o poema não tem futuro/ extênuo aborto de palavras inconvenientes/ com tino e trena.”

Pândego: aquele que é dado à alegria, à loucura (das palavras... dos causos e das cousas). Um olhar atravessado sobre o câmbio das horas!

Murilo Gun

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