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Dom, Ago

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Desde que Rimbaud, com o demônio de seus sintagmas, chocou o pensamento lógico enlouquecido pelos “fósforos cantores”, nunca mais um estremecimento lírico deixou de percorrer as vértebras do verbo ou a espinha dorsal da alma do leitor poético.

A catarse ou o desprezo, a unção ou o protesto, o eterno ou o efêmero, a infinitude ou o limite percorrem os espíritos como espinhos de rosa e nunca mais a poesia deixou de ser divina de tanto humana que é desde Rimbaud.

À França eterna foi concedido o privilégio de gerar poetas do nível de Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, além de Verlaine e Valéry, para citar poucos. E mesmo de certo modo o romeno Cioran (que é francês).

Isso explica o auge da civilização francesa no século 19 e nas três primeiras décadas do século 20. Apogeu que se repete desde muito.

A recepção da poesia revela o real nível espiritual de cada povo. Embora a produção poética não possa se nivelar pela capacidade produtiva da recepção. Cabe ao poeta contemporâneo do seu tempo (de si mesmo) testar e ampliar os limites e a capacidade de outros recepcionarem a poesia.

A China, o Japão, a Índia, a África – a África primitiva, original, ressalva Henry Miller – são lugares em que a poesia goza de prestígio, e os poetas são idolatrados ainda.

Quando se sufoca a voz do poeta, enfatiza Miller, a história perde o sentido e a ameaça escatológica irrompe (se faz presente o apocalipse), e varre as consciências nova e terrível aurora de sangue.

Se Rimbaud sufocou-se a si mesmo – e voltou à terra primitiva, é que ofereceu sua alma ao trópico e seu corpo ao deserto ofegante. Nessas condições de TP,duras condições, nesse ambiente crucial e capaz de provar a tenacidade e esgotar o desespero de um homem, Rimbaud buscou símbolos, e lapidou o espírito que iria aclarar a posteriori a atitude e o destino de um místico em estado selvagem, como carateriza Rimbaud Claudel.

Rimbaud não fugiu das quimeras que criou, acicatado pela voragem da usura, mas sentindo o mundo esgotado, o homem alienado, a sociedade impactada pelos rudes acontecimentos de sua época, a literatura apreensiva pisando navalha, o caos tomando face, o delírio da cobiça e da graça de mãos dadas, a poesia transfigurada pela loucura divina do jovem de Charleville, parou, estancou o ímpeto porque a vida ficara atrás, e ele viveu temporada no  inferno, que cantou, no solo africano, após os 18 anos, em holocausto à mediocridade do mundo, que ainda hoje ainda repele sua poesia fundadora da modernidade e condenada a jamais superar-se.

A única opção (para dilema tão extremo) foi o deserto, a lonjura, o comércio avassalador, o tráfico de si mesmo.

O seu lar (Aden) foi a cratera de um vulcão (espécie de leito de fogo) cheia de areia do mar, lacerada (ou laureada) de solidão, cercada por dunas – ou uma espécie de forno de cal sem vento ou alívio momentâneo.

E a última canção, o poema extremo, com que cingir seu sofrimento e recepcionar a morte, perdeu-se nas gretas do árido solo africano, ou se foi às estrelas e atravessa para sempre profundidades cósmicas.

A perna amputada, o enorme tumor reativado na coxa, os insidiosos gérmens do câncer devorando o corpo e o poema.

Rimbaud era apenas canção.

O assobio da bomba ainda tem sentido para nós, mas os delírios do poeta parecem disparates.

Somente sabemos que depois de Rimbaud, precisamos ser absolutamente modernos. Ou deixaremos de ser.

 

Murilo Gun

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