Roberto Cavalcanti de Albuquerque
Id, o novo livro de Vital Corrêa de Araújo, passa a integrar obra poética já vasta: original, complexa, surpreendente, mutante.
Obra a um tempo una e múltipla. Que se situa além dos limites confusos e atribulados de cansada pós-modernidade. Confirmando seu autor entre os melhores poetas pernambucanos, brasileiros, de língua portuguesa da atualidade.
Seguindo Freud e Jung, Vital Corrêa de Araújo vê no Id o reservatório da energia psíquica, das pulsões inconscientes de vida e de morte: É de riquezas sem conta: impulsos recalcados, forças arcaicas, conteúdos profundos, tempos ancestrais – o reino dos arquétipos que formam (e deformam) nossas vidas. Todo um mundo de forças primordiais, misteriosas, selvagens pode irromper de súbito, de dentro de nós. Mais fortes que o Ego, ele aflora o consciente, superando as interdições do Superego.
O Id é um motor em processo, um dínamo ativado, uma usina de forças psíquicas de alto potencial expressivo. Ilimitado no tempo e no espaço, é dotado de lógica especial, de natureza introspectiva. Jung encontra no Id fatos, não teorias. Abordá-los é um modo de penetrar dentro do si.
A poesia é a forma de escavá-lo, dele extraindo potenciais expressivos insuspeitados – puros como a neve, límpidos como o cristal.
Neste livro Vital vê e pratica poesia como reflexo do Id. “Isenta de forma (fixa)”, “é metamorfose ou disforme, a forma por vir, sendo “protêutica” (como Proteu, adquire forma que lhe sirva)”. Renuncia ou desdenha os princípios que balizam o poetar bem-comportado do Superego. “Por isso é anárquica, maleducada, brusca, um pouco má até, inconveniente sim, para milhões de leitores habituados com as baboseiras prosaicas de sempre (arrumadinhos de rima, facilitário do entendimento, capricho métrico, ábaco sempre repreendendo o espírito e calculando as medidas da página, combatendo a desmesura e o pé quebrado, pois a clínica ortopédica da palavra fecha nas emergências)”.
No poema “Eu Manifesto” Vital Corrêa de Araujo ele próprio se identifica, apresentando-se de corpo inteiro – decerto praticando aquela “razão impura” a que Eduardo Portella se refere a propósito de Gilberto Freyre:[1]
Vital não faz concessões
nem está à venda
a preços populares
cultiva o dolo e o cone
contra certezas burguesas
e convenções cruéis
a que submetem o poeta
em nome de sociologias rumorosas
fala da morte do cotidiano
nada humano, traste do dia
e da transitoriedade da descrença
de tudo que seja humano
vital poeta é superficial
não há fatos a relatar
nem relatos a fatiar
em seus poemas
ele arranca das pessoas
as almas tristes, calculistas
usurárias ocupadas do lucro de ser
vital é irrotulável e antipredicativo
seu poema é desconstrutivista
multiplicador de significados
máquina operária da palavra aparato
a abrir minas, fontes, sondas de significações
desgrupado, insulado, encastelado vital
o poeta ama a cama e o lápis
odeia convenções literárias
e achincalhe de palavras
de homens ocos perdidos no imo
de quartas-feiras cinzas.
Para ele poema não é sílaba enjaulada
rima amaneirada
ritmo mecanizado, andadura da palavra
a passo de metrônomo
tudo arrumado em estrofes conventuais.
Poema é ímpeto, sopro, liberdade
ritmo interior, verdade. TD
Bem dito. E antecipando-se diante de sua nova criação a possíveis dificuldades de seus mais atentos leitores, Vital Corrêa de Araújo lhes dirige frontalmente a palavra:
Percebo meu (mal) leitor (ileitor ou aleitor) quando da aleitura do meu (bom) poema: a beleza não é fácil, ele pensa... e para na segunda página, à margem da segunda folha. O egoleitor é frágil, medroso, id-ota. Valorizo tal leitor a ponto de complicar o quanto o poema (et pour cause sua leitura). Escrevo (eu, o id) para (completo) seu desconforto (do meu improvável leitor ególatra) porque não quero leitor fácil, id-otando em minhas negras páginas de sombras vastas. Quero leitor complexo, esforçado ego agudo que derive comigo e (i)delire mais do que eu (o outro, o doido id poeta destro). Leitor que me derrote, encrave bastamente em mim suas botas, me desrecalque por inteiro.
Sendo ele ainda, o autor, que continua:
Não desista e entregue os pontos (ou prantos reais ou românticos). Quede-se de quatro ante neoposmoderno poema (prato do id). O pior leitor é aquele acostumado a leituras de botas parnasianas da atrasada couraria do retrasado século XIX, habitado de arrumadinho delicado de rima no facilitário poético apaixonado e casto, viciado em sentidos já mastigados embolorados, empastado de saliva condoreira.
Para Vital, essa sua nova poesia, que reverbera do Id – esse iceberg submerso e solúvel de onde emerge o Ego – não aposenta a palavra. É, antes, “o instinto primário da palavra”. Palavra transformada, de natureza diferente da falada no cotidiano. Palavra a quem em nada interessa a “moralidade métrica”, seja burguesa, proletária, petista, oficial. Palavra vinda “do mais fundo abisso do verbo, da bacia (maior do que mil mares) do Id”
Nessa nova poesia, na ausência da palavra, uma linguagem a substitui, preenchendo o vazio, o nada. Ela não é mais um signo, é um corpo. Não é nem medida (Racine), nem sua rejeição (Shakespeare). No limite, quando a consciência está a caminho de apagar-se, tudo será apenas um som, sendo nesse mesmo momento que a cor explode. É isto que é a poesia, se acaso for. A poesia em seu nascedouro, prestes a extinguir-se.[2]
Praia de Nossa Senhora da Piedade, Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, fevereiro de 2013.
[2] Foucault, Michel, Dits et écrits I (1954-1975). Débat sur la poésie, p. 418-34.