(No meio do caminho tinha uma perda)
Vital Corrêa de Araújo
No poema de abertura do seu primeiro livro – Alguma Poesia (1930), título já prenunciando a arguta ironia drummondiana – Carlos Drummond de Andrade afirmou: “Quando nasci, um anjo torto/desses que vivem na sombra, disse:/ vai, Carlos, ser gauche na vida”. Gauche, de origem francesa, equivale em português a “esquerdo ou acanhado”. Anunciava-se, assim, de modo doloroso mas claro, o poeta que estava chegando, um ser avesso, inadaptado à realidade comum, como soe de ser poeta.
Aos dez anos, Drummond começou a ler – presente do pai a seu pedido – a Biblioteca Internacional de Obras Célebres (24 volumes), obra monumental, que o poeta César Leal zelava (de que possuo a coleção quase completa). A propósito, em 1924, Drummond escreveu a primeira carta a Manuel Bandeira, confessando sua admiração e aplaudindo o poema “Os sapos”.
Em 1925, casa-se com D. Dolores Dutra de Morais, à época, uma mineira avançada, que já trabalhava (e não ficava presa a prendas domésticas). Dolores Morais Drummond de Andrade morreria em 02/07/1994, já viúva de CDA, aos 94 anos.
Aqui começam os fatos basilares para a interpretação do mais famoso poema de Drummond: “No meio do caminho”.
Em 22/03/1927 – dois anos de casados – nasce o primeiro filho, Carlos Flávio, que morre meia hora depois de nascido, devido a complicações respiratórias. Onze meses e 13 dias após a morte de Carlos Flávio, em 04/03/1928, nasce Maria Julieta (que recebe o nome da avó, mãe de Drummond).
Julieta morreria em 05/08/1987, aos 55 anos. No seu enterro, o poeta, desconsolado, disse: “Assim termina a vida da pessoa que mais amei no mundo”. Drummond não dura – após essa outra e definitiva pedra do caminho, mais de 12 dias, morre a 17 do mesmo mês de agosto, aos 85 anos, 30 mais do que a idade de Maria Julieta. Em 31 de janeiro de 1987, escreveria seu último poema, já assolado pela doença insidiosa da filha, sua deusa.
Esse apego do nosso poeta pela filha, o fato de não se referir claramente ao filho, morto com meia-hora de nascido, nos induzem a acreditar que CDA prestou a Carlos Flávio a maior (e mais íntima, menos pública, mesmo oculta, porém imensa) homenagem que se possa prestar a um filho: o poema “No meio do caminho tinha uma pedra”. O mais famoso, polêmico, discutido e conhecido poema do século 20 brasileiro. Na realidade, Drummond disse: “No meio do caminho tinha uma perda”. Esse poema CDA publica na Revista de Antropofagia (Oswald de Andrade) em 1928, mesmo ano de nascimento de Julieta, e recolhe no 1º livro, Alguma Poesia.
Com o nascimento de Julieta, a pedra, a dor, o obstáculo, o óbice doloroso foram removidos, daí o verbo no tempo passado, superado: tinha.
Mas ele diz: nunca me esquecerei desse acontecimento: a morte de Carlos Flávio. Que ele viu, presenciou, sofreu: A morte na vida de minhas retinas tão fatigadas: de lágrimas, de choro, amargo e longo, cru, impotente, de revolta ante perda (que virou pedra, empederniu-se e se dissolveu) do filho, com pobre meia-hora de vida.
A repetição “tinha uma pedra” sete vezes enfatiza, pelo uso do tempo passado “tinha”, a dissolução da dor, a queda do obstáculo vital, a remoção do óbice purgado, da dor entranhada na alma, que parecia permanente, viva, irrecusável em sua veracidade e em seu simbolismo: o jovem poeta perdendo o primeiro filho, praticamente quando fazia o primeiro poema. A perda – no poema virou pedra (anagrama, recurso poético) – e a vinda de Julieta fez a voz verbal tornar-se tinha, havia. Maria Julieta sublimou isso tudo, e nela concentrando (por transferência) o amor e o otimismo, a alegria de viver, a retomada do ânimo pela vida e pela poesia, Drummond eliminou a pedra do meio do caminho de sua vida (ver analogia com Dante). A pedra, a perda, o fato difícil da morte de Carlos Flávio, o abrupto e o agônico desse acontecimento inesquecível, porque imprevisto, duro, inaceitável (visto e assistido por sua retina fatigada) – mesmo ilógico, além de injustíssimo, sob todos os ângulos – essa perda (pedra) do filho primeiro e tão esperado, dissolvente para uma família jovem, corroendo, ácido terrível, os sonhos de um rapaz de 26 anos cheios de ambições e propósitos (quase todos poéticos). Tudo desapareceu com a vinda, onze meses depois do infausto, do mais fasto dos fatos, do acontecimento – vital, o nascimento – consolador ou mais: restaurador – de Julieta: daí por diante o mais inesquecível na vida da veia, do poeta. E só a perda de Julieta – a nova pedra viva de sua morte – levaria de roldão o poeta. A outra ficou presa, também viva, mas meio irrevelada, marcada, presente (mas distante, sublimada) no poema polêmico.
O poema “No meio do caminho” começou a ser composto (primeiro, pela imaginação), em 1927, após os idos (infaustíssimos) de março (morte de Carlos), como, quem sabe, uma elegia triste, amara. A partir dos fastos de outro março (1928), o poema adquire sua forma definitiva. A perda vira pedra e definitivo passado.