02
Sáb, Ago

destaques
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Essa mania, essa anelo artificial de perfeição formal externa, essa arte de relojoaria verbal e ourivesaria rímica, essa performance métrica, esse lavor versificatório todo, tudo é insincero, falha de originalidade, artifícios forçados. Não há fórmulas de naturalidade, já fuzilava, há 70 anos, Tristão de Athaide, o grande pensador católico brasileiro e crítico literário de monta. História do modernismo.

            Oscar Wilde, da prisão por homofobia inglesa, a um amigo, dizia: “Se eu passasse toda a minha vida futura lendo Baudelaire em um café, levaria uma existência perfeita”. Para uma alma requintada, as coisas banais, simplórias – que a multidão ama – são artificiais e forçados.

            Mallarmé e Rimbaud – gênios da raça francesa – foram espontâneos e complexos, não simplistas e mecânicos.

            O verdadeiro artista da palavra – arte difícil, enganosa, complexa – é sibilino, simples artificial, mas não fácil.

            A messe vital do mais opulento engenho vital – qual um demiurgo siderurgiando o verbo – é intrincada e complexa, embora espontânea e de certo modo simples, pois não é eivada de cálculos, trenas, busca de infiéis sons finais harmônicos e artificialidades mesquinhas.

            O poema limpo, lavorado, bilaqueado, cromatizado é artificial embora exótico, sobretudo simplório demais. Lírio sujo, natural, é poesia vera.

            No poema neoparnasiano, as expressões soam em falso, as imagens são rebuscadamente forçadas ou desgraciosas, posto que plena de artifícios baratos, face aos artefatos usados. De inspiração trivial e gosto duvidoso. É oca e falsa, embora aparente arte nobre e pura. Objetivo das dominações materiais para fins culturais.

            O poema tem por conteúdo algos estranhos ao coração poeta. Não basta sentir para ser poeta – e cursar metrificações. O valor da poesia está no cantar as coisas alheias ao seu coração, dizia Tristão, em anotações minhas dos livros críticos do grande Alceu de Amoroso Lima.

            A simplicidade (e o cálculo) leva ao artifício. A complexidade da alma é um dínamo poético. Sem trégua. E indomável.

            A alada graça da humana fêmea é tudo

           

            Poesia absoluta dá asas ao espírito.

            Concede bônus de fogo à alma.

 

            Nela eram três os entusiasmos.

A loucura, a mulher, outra loucura

que não diz o nome, e a natureza lírica

da vida.

            Os grandes – e rosados – lábios íntimos

            intumescendo o anelo animal

             os inigualáveis olhos abovedados

            de lento azul e íris furiosa

            e a alma plena de desejos inimagináveis

            (mesmo impublicáveis, de tão impúbicos).

 

            Os olhos dela subjugam.

 

            O rio do tempo (heraclitiano fluxo e impuro

            da vadia horda da hora) estanca em mim.

            E a eternidade do teu olhar não passa.

            Ou melhor – e mais felino – a eternidade toda

            começa num mamilo teu.

            És como jorro, raio, gota de luz, sal vital

            a levar o infinito à eternidade do gozo.

 

            A bordo do abismo, voo.

 

            Trêmula nuance de ti alucina.

 

            À montanha do tempo, à morte viva, esse rato

que os navios da vida abandonam.

 

            Sudário, ataúde, baunilha.

 

            A vida caminha estrada afora sem oriente

            ao norte da morte, rumo sem sentido. Absoluto.

 

            Todo caminho reto é recuo.

 

            Ouro onírico vale mais que o metálico.

 

            Busco saciar vital soledade em ti.

 

            Solidão a um, solidão sem Deus.

 

            O outro extermina a solidão.

 

            Dissolver-se no ser. Não dissolver o ser.

 

            Poesia: alma do fogo da alma.

 

            Onde vivem as infinitas horas?

           

Em que nicho proliferam?

 

            Quanto dura a eternidade, afinal?

 

            A poesia leva aos olhos

            escusa luz escassa... e eles sedentos de treva

recusam.

 

O fluxo dos ecos, a chusma dos reflexos.

 

À luz baça da vidência

à luz lassa do delírio.

 

E se vais à árvore conhecer a vida

irás ao pecado embelezá-la

(de gozo e poesia).

 

Só o cadáver não mais crê.

E vermes só creem em cadáver.

 

E nem larva teme cadáver

porque ele também é larva.

 

Não busque esclarecimentos do poema

ele não é bula nem bíblia

nem queiras tirar dúvidas à razão:

cúmplices destecem o ser.

 

Qualquer curva é reta

qualquer norte ermo

qualquer rota rota é humana.

Todo ser deserto.

 

Ascender à resplandecente e majestosa

eternidade, mesmo à custa de luz inferior.

 

Já vi Deus nas rosas do jardim selvagem.

Tal como Hermilo, o viu no pasto.

 

Amo as cinco horas que me acordam

a ver a gota vagarosa do orvalho

na haste do pássaro pousar, escorrer

pelo rosto da dália

junto à janela

ainda aberta da alma.

Quando desperto pássaros, vejo

a luz do voo alargar, crescer

o céu, rosas múrmuras, néctar sorrindo

abrir o poema as asas...e

a manhã pousar na página.  

Murilo Gun

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