(à moda de Anacreonte)
“vinho da palavra, metáfora
sua embriagues, poesia!
Aos vinhos, esta ode-quase-ditirambo,
e à memória das noites brancas
dos anjos roses, dos evoés desvarios
e da unção de nossos lábios
pela dádiva do vinho, esse bem do espírito,
metafísica líquida, odre de alegria
para a alma, tua e minha!
Nem hecatombes despertam
Os deuses cúbicos de sua bêbada meditação
No altar das tinas, na igreja longa das adegas.
EXPLICAÇÃO AO CAPITOSO LEITOR
CONCEITO
O poema tem a forma de ode-sinfonia quase-ditirambo ao vinho, esse liquido sonâmbulo, báquico, crucial e súbito, que tintos deuses derramaram dos febris tonéis agrários às sequiosas bocas dos homens para gáudio das gargantas e triunfo dos sentidos.
PADRÃO
O modelo é a ode sinfônica, poema musical, do gênero descritivo, sem forma definida – strictu sensu – adaptado, portanto, à escrita, entremeando estrofes, coros recitativos, com vezos oratórios e surtos de cantata lírica, permeando ânimos retóricos a cenas de sonho concupiscente, à Dionísos.
TEMÁTICA
O tema é o amor ao vinho e a seus prazeres túmidos, o fruir voluptuoso e dionisíaco desse grego líquido e sagrado, através da sóbria, pura, delirante palavra poética, a única capaz de expressá-lo virtualmente, em toda sua nuance, intensidade e pureza.
MODO
E o modo do canto é o gracioso e etéreo, como rama de tenro pássaro ou rima úmida, que atice as benesses da uva até a volúpia da infinita leitora.
FIM
A finalidade do poema é ouvir-se vozes de vinho, ébrias sílabas, vocábulos undívagos, tintos bemóis, consoantes líquidas, sumos fônicos e puros.
CANTO DEDICATORIAL
i
Geometria líquida, monge infinitesimal ao vinho
do silencio alimento, hóstia floral
rubro artífice de auroragerado
e da âmbar penumbra convulso amante
nascido do sono da terra
passageiro do fruto
do cálice, lume peregrino
do tempo, alma e utensílio
do ventre cântaro habitante ubíquo
prêmio do odre, do lagar amo
egresso de verdes labirintos e de ardis perdidos
do âmago servo longíquo, da tânica têmpera devoto
dos pés ulisses e de macias peripécias emerso
para outras odisséias rurais, épicas bucólicas
e novos homeros crateras
erguerem ao límpido futuro.
ii
Ao vinho, oração líquida capturada rededicanto
no profundo coração da uva
sumo que lateja, seiva vital
que na paz da tina amadura
espírito unívoco, essência cívica
ávida mônada que das pipas súplices
às gargantas escapa do longo mundo.
iii
cântaro do espírito ao divo cálice de vinho
ânfora e grito, lume infinito.
iiii
tintos habitantes do céu dos tonéis aos deuses báquicos
iiiii
A essa forma de prece e alvorada ao brinde vinho
a este continente de sede e sono
o mais puro brinde sorvo
ergo o trago mais profundo.
A esta lágrima de cristal e garça
a esta cave em que o vinho golfa
a esta gota aberta em copa
oferto à tua boca minha taça.
iiiiii
que formas dá aos barris. à aduela
iiiiiii
que uvas transporta ao lagar sagrado. à dorna
Perguntas pelo Vinho
És da inquieta estirpe do cristal?
Descendes de que safira nua?
Fugas árduas encantam-te
a fragrante cor musical?
Quem te doma o puma do aroma?
Tigres do relâmpago acalmas
e lentas seivas tocaias
de estrelas estraçalhando taças?
Cálices e almas lampeja
quem os avaros jades recolhe?
Quem de joelhos põe diademas
os sonâmbulos fluxos desata?
Se inóspitos rubis escapam
do reflexo genial da garrafa
quem os acolhe com mãos de ônix
e com tiaras atravessa praças?
Sangue da Verdadeira Vinha
Vésper de nácar: vinho
urdume de deuses, lince
no silêncio da tina cúmplice.
Vórtices de cor: vinho
amálgama púber, jaguar
na adega do breve rumor.
Videntes seivas: vinho
líquido que dança e atiça
cálices do lábio ulisse.
Gritos de vides: vinho
meigas sendas de Baco
dorso de sáfaro presságio.
Da Verdadeira Vinha, pão.
Da geométrica eucaristia âncora.
Da alma salvação.
Vinhos do Brasil para o mundo todo
De geometrias e auroras
e iluminados domingos
enfileirados de flores
de sábados antigos, de férrea casta
do golpe de pássaros
e graves canções de perfumes
da respiração das abelhas
e cúmplices floresceres
sois frutos, agrestes e tão puros
Vinhos do Brasil para o mundo.
Na adega o agudo ávida boda púrpura
eco de tina anuncia
nascer vinho rubro despertar
e púrpuro ofertar-se
a árduas e nuas taças.
Na adega o firme adelgaçar da cor benta cópula alquímica
a adenda do tempo ao mosto fremente, o lento
e viril alento do álcool vir
beirar o sopro o agrícola espírito
e a forma apurar-se do aroma
anunciando aos céus o Vinho Brasileiro
fruto da cópula do silêncio, do coito esplêndido
da sertaneja uva com úmidas bênçãos franciscanas
hábito que se faz ubérrimo e sólido vinho em verdade.
O vinho da tâmara chama-se lagmy a Gide
e foi uma taça de lagmy que um pastor cabila
a Gide ofereceu nos belos jardins de Uardi.
Gide bebeu todo o ávido vinho da tâmara
e viu gerar-se vasto oásis em sua íris
da pupila viu brotar tempo intimo
desertos dessedentaram-se em sua boca rubra
apascentou-se a tarde em sua mão de lua.
Entre flores afegãs e pedras beduínas Gide navegou
no dorso dos camelos da utopia
nas águas fundas da fantasia
nas ásperas naves do seu sonho árabe.
Gide embriagou-se longamente
com o vinho capturado
do coração das tâmaras profundas.
vinhos do Brasil
A duração da fragrância, intensa (ramalhetes de aromas)
duradouras e profundas as vitórias dos aromas
triunfais incensam os sentidos
e celebram efusão de espíritos.
Aromas doces como sons de flautas
verdes como campinas largas
rubros como relâmpagos
ágeis como cavalos
mas leves e supremos como pele de criança
ou os primeiros raios do sol de dezembro.
Do silêncio te alimentas vinho, veio do silêncio e uva
te nutre grito de vides nuas tinto alimento do espírito
amaduras em sossegados barris
longe do tempo partido dos homens
das agruras do lodo, dos dolos etílicos
perto de macias auroras e trêmulos idílios.
Artífices do êxtase supremo à rija forja tinta
cubas de báquico fermento
horas maduras, sonhos, épuras
à tua nudez acrescentaram
aromas tenros, límpidos rubor, sabores
de pólens sutis e rútilos inebriares
súbitos como calmas madrugadas.
Inflamam-se utensílios, e primícias roda vinha
se apossam dos incêndios como auroras
noite ébria e caudalosa dilacerando.
Botijas são códigos súbitos, ubertosos vasos âmago vinho
ânforas puras, crateras primas
sumos amantes, continentes úmidos
encantadas caves, urnas liquidas, cofres etéreos
do âmago guardiões avaros.
Longo monge: vinho “No sono da parreira sonha a uva
da cela da pipa recluso no sumo sono e no sumo da uva vive o vinho”
cave onde medita e amadura
contemplando madrugadas mornas
e cúmplices essências descobrindo
no minucioso silêncio das dornas.
Ungida Sêmele pelo divo sêmen, fruto dionísio, vinho. mito nectarino
Néctar que urdem os alegres, precisos pés de Ulisses néctar mítico
néctar que o ciclope liba em haustos longos, sinceros
néctar em que o grave grego trama seu astuto destino.
No palco da taça líquido invento de Baco baila veio e cena do vinho
dança licor supremo de divo néctar vindo
da cor da aurora macio como amanhecer.
No estojo do cálice ébrios rubis cintilam
navegam em nau de lenta opala aquáticas pérolas
minucioso topázio anunciando volúpias.
Líquidos cristais revelam cerne de antigas vertigens
estirpes áticas e puras
e a força geométrica do aroma.