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Ter, Abr

Ensaios
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Envolta em matilha de brilho, com níveos dedos-rosa, em riste a cor que Febo semeia, a manhã avança e junca de claridade a terra (a treva desanca); das aves o coro de arrulhos acorda o mundo todo, do mar ao sertão o agreste incêndio do sol benzendo o vivo; o ruído dos arroios (incluindo o córrego dos Coqueiros, que do balde do açude eleva a harmonia aquática ao ouvido das nuvens) brota com o  rosto da aurora; a flora, o zéfiro, a água, o vento, a voz, o céu bradam, e as cores do grito, e o vôo da luz, inundam ruas e jasmins; a latada de cidreira, o abraço da malva, os gerúndios de mostarda, batalhões de camomila, alfarrábios de lírio, bálsamos de alfazema, tulhas de ervas doces ,redondilhas de flores, dançante zumbir de abelhas, néctares voando, pólens sorrindo, tudo une e anuncia a manhã que desponta, pressurosa e ridente, em Vertentes, terra da palavra e do coração, seiva e lume, corça e gume, leito e sono, sonho e nume, graça sem sombra, silêncio que fulge, aroma armazenado no ar montanhoso, respiração de pássaro, Vertentes, onde a lua vem dormir e onde o sol acampado espera, noturno lince, o sono lunar, para seu rosto  vertentense exibir à vida, abrir ao mundo o sorriso lúcido, o cintilante esgar do céu jogar em ímpetos quânticos; enquanto o cântico dos regatos sobe, raios certeiros do Júpiter agrestino acertam o peito da cidade-mãe.

Diria João Milton, o céu atento vela para ver-te, Vertentes, a ti, irmã da natureza, Senhora de várzeas e currais. Todas as coisas vendo-te se alegrem por tua doçura arrebatadas, perante tua pertentosa e estonteante beleza se ajoelham cumes e planícies. Eva (torrão primal, cidade suma) a quem todos os adões se devotam, a quem todos os poetas elevam prece lírica e comungam canto e memória sobre o corpo da cidade alterosa.

 

Vertentes, cidade que tem o privilégio ímpar de ter uma serra a seus pés, para que águas vertentes, das rochas íngremes, das pedras primordiais caiam, desçam até nossas bocas, saciem o coração e a verdade.

Esse é o teatro, a cena inicial em que o drama da memória loniana se desenrola e, afiada, atualiza todo um potencial de vivência e participação nos fatos, nas vicissitudes, nos fastos da cidade de Vertentes.

Jerônimo, o velho amigo Lon, agora representando todo um fiel e brilhante séqüito de conterrâneos, com quem partilhei amizade e infância, hoje escritor também brilhante inaugura com sua coragem e talento um ciclo, um projeto que por certo irá contaminar e se estender, o da recuperação da memória recente, mas já histórica, das cidades.

Este livro é um marco e uma provocação para que os vertentenses busquem o instante passado e mergulhem na pesquisa, se afundem na lembrança, esquadrinhem os escaninhos do tempo vivido, alonguem-se na ancestralidade, ressuscitem a linhagem, comuniquem-se com a estirpe.

Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque iniciou esse veio rico e profundo, a partir de uma árvore genealógica que meu pai – Cláudio Corrêa de Araújo, confiou a ela, e assim fez reviver a história ancestral de Vertentes com alicerce nos ramos Cavalcanti de Albuquerque / Corrêa de Araújo, e publicou três livros sobre suas pesquisas, em forma romanceada.

Temas políticos, administrativos, empresariais, urbanos e rurais, motivos da paisagem, fazendas, casarões, aventuras, tudo cabe num projeto de pesquisa, via entrevista, busca de dados em cartórios, testemunhos documentais, cartas, fotos etc, que recupere, antes que para sempre se extinga, a memória da cidade.

A família é algo vivo – é praticamente o que existe e sobrexiste: o indivíduo, por mais vaidoso que seja e viaje em torno do imenso umbigo, é mortal, inócuo, desvalia; só a família em que se insere, essa corrente viva e imortal, dá-lhe visibilidade e conseqüência. A família é imortal, é o legado que deixamos, imaterial e permanente.

Reitero a importância, para a comunidade de jovens (rapazes e moças, estudantes, recém-formados) e mesmo os vertenteses em geral que vivem ou trabalham na cidade, do livro de Lon, pelo que representa de novidade e estímulo ou instigação para materializar o interesse em estudos e pesquisas históricas e nas realidades políticas de nosso povo. Por que Vertentes permanece num patamar tão mais abaixo dos vizinhos Surubim, Taquaritinga, Toritama e Santa Cruz?

Cabe a qualquer um de nós, vertentenses, botar a boca no trombone, opinar, contar sua trajetória, desnudar o passado recente, para visualizar ou possibilitar um futuro melhor. A retrospecção é instrumento da prospecção.

As práticas políticas (ou micropolíticas) são a esfera ou o lugar de perversões em que as vítimas são populações, cujo maior pecado é com seu voto elegerem representantes (que nunca nos representam na medida do contrato democrático).

A questão do poder é fundante e torna-se pontual quando uma sociedade atinge um nível de exaustão e desesperança, como a vertentense, ante infrutífero futuro. É preciso sair da ruralidade, dar o salto qualitativo para o mercado, fugir do destino agrícola, que é ilusório, para a senda do serviço e o patamar da indústria. O caminho é a profissionalização real e a auto-estima elevada, e isto se alcança com mobilização cultural (não doações do setor público, mas conquistas da população).

E livros como o de Lon são fundamentais. O povo, quando gasta a arma do voto, após a eleição, que funciona como uma força continua, cuja preponderância (ou maioria) elege os representantes, quando dispara essa arma pulveriza-se como se fosse ele o atingido. E a culatra recebe o tiro.

É essa inércia que provoca o atraso. Só mobilizado, ativo, vivo, o povo tem força permanente.

E o fermento dessa força é a cultura, o orgulho, a busca de vigor, e a escavação do passado cria os instrumentos de ação que propiciam ímpeto, vigor e conseqüência. É como se o mandato, a representação fossem reconfirmados e precisassem disso.

O trabalho de delegação sendo esquecido e ignorado (como o é em Vertentes) gera a alienação política. Ou fetiches políticos, isto é, pessoas, coisas, seres que parecem não dever satisfação e contas ou meras explicações a ninguém, senão a si mesmos. Acham-se donos, autônomos, de um existência que lhes foi dada pelos agentes sociais. Os mandantes adoram, cultuam, amam sua própria criatura – e desprezam os criadores.

Cidade como Vertentes tem que gerar sua intelectualidade local e não depender dos que vivem fora de seus muros.

Intermediários entre a Cidade e o Espírito são os que se criam como força viva, como agente autônomo (e nunca como sequazes ou seqüelas do poder político – e transitório – vigente). É que alicerçam, embasam sua autoridade, sua força, no orgulho de ser ativo, presente, e de ser consciente do passado político e social (e suas mazelas inclusive) e da estirpe familiar que os balizam.

É este o exemplo de Jerônimo. O escritor (hoje, Lon é membro efetivo da UBE) é testemunha do seu tempo, e é esse testemunho de várias décadas de fatos que ele traz à tona, revive, coloca à análise, expõe ao conhecimento de todos. A propósito, ele me solicitou que sugerisse retirar certas partes... eu recusei e recuso, porque a verdade é feita de versões e a polêmica ou a complementação é algo fecundo e conseqüente.

A história das idéias e práticas políticas de Vertentes, na segunda metade do século 20, está começando a sair, a viver, a operar. E essa ressurreição  é vital para que Vertentes volte à sua glória passada, ao seu fastígio.

Devemos isso às novas gerações. E esse débito precisa ser quitado com urgência, nessa primeira década do tempo novo.

Também, este livro guarda uma história de amor, mostra a trajetória emocional e afetiva de um jovem, que ama e luta valentemente pela vida e o amor. Severina, a amada, (que foi minha colega de classe, no Grupo Escolar de Vertentes), e Lon, o escritor, são pessoas realizadas, avós, pais de pessoas de bem, formadas, vencedoras na vida, todas submissas ao exemplo de vida de Jerônimo e Severina, pessoas a quem qualquer um admiramos.

 

 

 

Vital (Cavalcanti de Albuquerque e) Corrêa de Araújo é vertentense, filho de Deográcia Cavalcanti de Albuquerque e Cláudio Corrêa de Araújo, escritor, com 10 livros publicados, e atual presidente da União Brasileira de Escritores.

Murilo Gun

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