Poema conjetural é um poema com 44 versos, distribuídos em 2 estrofes (uma, com 38, outra, com 6 versos), vazado em endecassílabos, em métrica espanhola.
O poema pode ser dividido em 10 blocos nítidos, constituídos pelos versos 1/5, 6/12, 13/17, 18/21, 22/24, 25/27, 28/31, 31/35, 36/38 e, última e segunda estrofe, versos 39/44.
Curiosamente, a montagem do poema poderia ser diferente, imprimindo ao mesmo mais logicidade, o que Borges detestaria. Os blocos 2, 5 e 3, iniciando nessa ordem o poema, resultaria numa composição mais direta do tema, bem como os blocos 4 e 10 constituiriam o encerramento lógico da peça, além de outros arranjos possíveis.
Neste poema, um dos mais perfeitos, senão o mais bem urdido da poética moderna, Borges assume a consciência da Laprida, no fatídico momento em que a morte busca o prócer, e procede a uma meditação filosófica sobre a vida:
“Eu, que estudei as leis e os cânones
eu, Francisco Narciso Laprida,
cuja voz declarou a Independência
destas cruéis províncias, derrotado
de sangue e de suor maculado o rosto
sem esperança nem temor, perdido,
fujo até o sul pelo último declive dos arrabaldes”.
Nessas seqüências enumerativas é realçado o contraste da expectativa com a realidade, da vida perante a morte, quando os louros do passado são demolidos pela presença da eterna Senhora (a morte).
No início do poema, o leitor é introduzido no fato objetivo do fim da batalha, dramatizando-se o espaço em que:
“Zumbem as balas na tarde última
há vento e há cinzas no vento”.
Nos versos 13/17, do 3º bloco, Borges alude a Dante (Purgatório, V, 85/129) e praticamente transcreve dois tercetos da Divina Comédia; no trecho dedicado ao Capitão gibelino Montefeltri Buoncomte.
É inusitada a forma de narrar o Poema conjectural, ora em 3ª pessoa, ora na voz do próprio Laprida, que anuncia e denuncia sua própria morte, e posteriormente é citado pelo autor como uma 3ª pessoa, momento em que Borges se confunde com o narrador (o eu poético).
Um dos instantes mágicos do poema ocorre quando laprida aceita com júbilo o destino da morte (e a morte como destino): o preclaro varão portenho, herói humano, fala:
“porém me espessa o peito inexplicável / júbilo secreto. Ao fim, me encontro / com meu destino latino-americano”.
Reicindindo na técnica de enumeração caótica, Borges diz descobrir, encadeadamente:
“A recôndita chave de meus anos
a sorte de Francisco Laprida
a letra que faltava, a perfeita
forma que Deus soube desde o princípio”.
A confissão quase final de Laprida, vazada nos belíssimos versos:
“No espelho desta noite distingo e atinjo / meu insuspeitado rosto eterno. O círculo / vai se cerrar. Eu aguardo que assim seja”.
representa o acesso à eternidade, como categoria, onde o tempo já não existe, como mera passagem, embora ressonâncias viquianas fluam, entre dantescas alusões.
A estrofe final descreve a presença da morte de Laprida, que contempla o último alento chegando fatal e heroicamente, e prega a aniquilação, já antecipada no 4º bloco (versos 18/21), em versos magistrais:
“A noite lateral dos pântanos, oblíqua e nua, / me espreita com sua sombra. Ouço os ossos / de meu corpo alanceado que a morte tremula / com emblema, vertigem e ginete”.
Poema conjetural é um dos mais profundos, expressivos, concisos de Borges, que alcança alturas metafísicas insuspeitadas.
POEMA CONJETURAL
O doutor Francisco Laprida, assassinado no dia 22 de setembro de 1825, pelos guerrilheiros de Aldao, pensa nates de morrer:
Zunem as balas na última tarde.
há vento frio e cinzas no vento,
dissolve-se o dia e a batalha
se esgota e é dos outros a vitória.
Vencem os bárbaros, gaúchos vencem.
Eu, que estudei a fundo a lei e os cânones,
eu, Francisco Narciso de Laprida,
cuja voz declarou a independência
dessas cruéis províncias, derrotado
de sangue e de suor maculado o rosto,
sem esperança nem temor, perdido,
fujo até o Sul pelo dective dos arrabaldes.
Tal como o capitão do Purgatório
que, a pé fugindo e ensangüentando o chão,
foi cegado e morto Tombou
onde um escuro rio perde o nome,
assim hei de cair. Hoje é o fim.
A noite lateral dos pântanos, oblíqua e nua,
me espreita com sua sombra. Ouço os ossos
de meu corpo alanceado que a morte tremula
com emblema, vertigem e ginete.
Eu que almejei ser outro, ser um homem
de sentenças, de livros, de ditames,
a céu aberto jazerei nos charcos;
porém me espessa o peito inexplicável
júbilo secreto. Ao fim me encontro
com meu destino sul-americano.
A esta ruinosa tarde me levava
o labirinto múltiplo de passos
que meus dias teceram desde a infância
tempo já remotíssimo. Então agora descubro
a recôndita chave dos meus anos
a sorte de Francisco Laprida
a letra que faltava, a perfeita
forma que Deus soube desde o princípio.
No espelho desta noite distingo e atinjo
meu insuspeitado rosto infinito. O círculo
vai se cerrar. Eu aguardo que assim seja.
Já pisam-me os pés a sombra das lanças
que me buscam. O escárnio da minha morte,
os sinetes, as crinas, os cavalos
me circundam... Eis o relâmpago do golpe
e o duro ferro que me racha o corpo
e demole a alma. E a íntima facada na garganta.
1943
JUNÍN
Sou, mas também o morto sou, por certo,
O outro do meu sangue e do meu nome;
Sou um vago senhor e sou o homem
Que deteve as lanças do deserto.
Volto a Junín, sem nunca ter lá estado,
A teu Junín, avô Borges. Tu escutas,
Sombra ou cinza última, ou refutas
Em teu sonho de bronze este clamor partido?
Buscas talvez por meus inúteis olhos
O épico Junín de teus soldados,
A árvore que plantaste e os cercados
E no confim a tribo e os despojos.
Vejo-te triste, de feições austrais.
Quem me dirá quem foste e como eras.
Junín, 1966
(El Outro, el Mismo)
JOÃO, I, 14
Não será menos um enigma esta folha
que a de Meus livros sagrados
nem aquelas outras que repetem
as bocas ignorantes,
julgando-as de um homem, não espelhos
obscuros do Espírito.
Eu que sou o É, o Foi e o Será,
volto a condescender com a linguagem,
que é emblema e tempo sucessivo.
Quem brinca com uma criança está a brincar
com algo próximo e misterioso;
quis brincar com Meus filhos.
Estive entre eles com assombro e ternura.
Por obra de magia
nasci de um ventre invencível.
Vivi enfeitiçado, prisioneiro de um corpo
e da humildade de uma alma suprema.
Conheci a memória,
essa moeda que não é nunca a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do futuro incerto.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne,
os lentos labirintos da razão,
a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz.
Bebi o cálice até às fezes.
Vi por Meus olhos o que nunca vira:
a noite e as estrelas.
Conheci o puro, o arenoso, o áspero, o diferente,
o sabor do mel e das maçãs,
a água na garganta da sede,
o peso de um metal na palma da mão,
a voz humana, o rumor de uns passos na erva,
o cheiro da chuva na Galiléia,
o alto grito dos pássaros.
Conheci também a amargura.
Encomendei esta escritura a um homem qualquer;
nunca será o que quero dizer,
mas não deixará de ser o seu reflexo.
Da Minha eternidade estes signos caem.
Que outro, não o que é hoje o seu copista, escreva o poema.
Amanhã um tigre serei no meio dos tigres
e pregarei a Minha lei à sua selva,
a uma grande árvore na Ásia.
Às vezes penso com saudade
no olor dessa carpintaria.
(Elogio de la Sombra)
BUENOS AIRES
Que será Buenos Aires?
É a Praça de Maio a que voltaram, depois de terem guerreado no continente, homens cansados e felizes.
É o dédalo crescente de luzes que divisamos do avião e sob o qual estão a açoteia, a vereda, o último pátio, as coisas quietas.
É a parede em ruínas da Recoleta contra a qual morreu, executado, um dos meus antepassados.
É uma grande árvore da rua Junín que, sem o saber, nos concede sombra e frescura.
É uma longa rua de casas baixas, que perde e transfigura o poente.
É a Doca Sul de onde zarpavam o Saturno e o Cosmo.
É a vereda de Quintana em que meu pai, que estivera cego, chorou, porque via as antigas estrelas.
É uma porta numerada, por trás da qual, na escuridão, passei dez dias e dez noites, imóvel, dias e noites que são um instante na memória.
É o cavaleiro de pesado metal que projecta do alto a sua série cíclica de sombras.
É o mesmo cavaleiro sob a chuva.
É uma esquina da rua Peru, onde Júlio César Dabove nos disse que o pior pecado que pode cometer um homem é engendrar um filho e sentenciá-lo a esta vida espantosa.
É Elvira de Altear, a escrever em cuidadosos cadernos um longo romance, que no princípio era feito de palavras e por fim de vagos riscos indecifráveis.
É a mão de Norah, a traçar o rosto de uma amiga que é também o de um ajo e de um círio.
É uma espada que serviu nas guerras e que é menos uma arma que uma lembrança.
É uma divisa desbotada ou um daguerreótipo gasto, coisas que são do tempo, esse soberbo.
É o dia em que deixamos uma mulher e o dia em que uma mulher nos deixou.
E aquele arco da rua Bolívar do qual se divisa a Biblioteca.
É a sala da Biblioteca, em que descobrimos, por volta de 1957, a língua dos ásperos saxões, a língua da coragem e da tristeza, vogais da mágoas, consoantes de triunfo ....
É o aposento contíguo, onde morreu Paul Groussac.
É o último espelho que repetiu a cara de meu pai.
É a cara de Cristo que vi no pó, desfeita às marteladas, numa das naves da Piedade.
É Lugones, a olhar pelas janelas do comboio as formas que se perdem e pensando que já não o perturba o dever de traduzi-las para sempre em palavras, porque esta viagem será a última de quantas foram inultimente empreendidas.
É, na noite desabitada, certa esquina do Onze em que Macedónio Fernández, que morreu, continua a explicar-me que a morte é uma falácia.
Não quero continuar; estas coisas são demasiado individuais, são demasiado o que são, para serem também Buenos Aires.
Buenos Aires é a outra rua, a que não pisei nunca, é o centro secreto dos quarteirões, os pátios derradeiros, é o que as fachadas ocultam, é o meu inimigo, se o tiver, é a pessoa a quem desagradam os meus versos (a mim também me desagradam), é a modesta livraria em que porventura entramos e já esquecemos, é essa rajada de milonga assobiada que não reconhecemos e nos toca, é o que se perdeu e é o que será, é o depois, o alheio, o lateral, o bairro que não é teu nem meu, o que ignoramos e queremos.
(Elogio de la Sombra)
ELOGIO DA SOMBRA
A velhice (este é o nome que lhe dão os outros)
pode ser o tempo da ventura.
O animal está morto ou quase morto.
Restam o homem e a sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que ainda não são trevas.
Buenos Aires,
que outrora se esgaçava em arrabaldes
rumo à planície interminável,
voltou a ser o Retiro, a Recoleta,
as confusas ruas do Onze
e as precárias casas velhas
que chamamos ainda o Sul.
Na minha vida as coisas foram sempre demasiadas;
Demócrito de Abdera arrancou os olhos para pensar;
o tempo tem sido o meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não magoa;
flui por um manso declive
e parece-se com a eternidade.
Os meus amigos não têm cara,
as mulheres são o que há tantos anos foram,
as esquinas podem ser outras,
as páginas dos livros não têm letras.
Tudo isto deveria apavorar-me,
mas é um regresso, uma doçura.
Das gerações dos textos que há na terra,
só terei lido uns poucos,
os que na memória continuo a ler,
a ler e a transformar.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte,
convergem os caminhos que me têm trazido
ao meu centro secreto, a meu íntimo teorema.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, ressurreições, agonias,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do passado
e dos passados do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o amor partilhado e as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Posso agora esquecê-las. Atingi o meu centro,
a minha clave e a minha álgebra,
o meu espelho.
Em breve saberei quem sou.
(Elogio de la Sombra)
AO IDIOMA ALEMÃO
O meu destino é a língua castelhana
O bronze de Francisco de Quevedo,
Mas na vagarosa noite caminhada que se desdobra em sombra
Exaltam-me outras músicas mais intimas.
Alguma foi-me dada pelo sangue
– Oh voz da Escritura e Shakespeare –,
Outras pelo acaso, que é benévolo,
Mas a ti, doce língua da Alemanha,
Escolhi-te e busquei-te, solitário.
Através de vigílias e gramáticas,
Da selva espessa das declinações,
Do dicionário, que não acerta nunca
Com o matiz preciso, aproximei-me.
Minhas noites estão cheias de Virgílio,
Disse uma vez; também posso dizer
De Hölderlin e de Ângelus Silesius.
Heine deu-me seus altos rouxinóis;
Goethe, a fortuna de um amor tardio,
A um tempo indulgente e mercenário;
Keller, a rosa que uns dedos depõem
Na mão de um morto que lhe queria muito
E que nunca saberá se é branca ou rubra.
Tu, língua da Alemanha, és tua obra
Capital: o amor entrelaçado
Das vozes compostas, as vogais
Abertas, esses sons que propiciam
A decifração do hexâmetro grego
E o teu rumor de selvas e de noites.
Tive-te algumas vêzes. No fim, hoje,
Dos anos fatigados, vislumbro-te
Longínqua como a álgebra e como a lua.
(El Oro de los Tigres)