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Dom, Ago

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Vital Corrêa de Araújo* 

Ulisses abarca, em suas 852 páginas, a descrição ou a ação, ou seja, o relato, peripécias e vicissitudes, dramas cômicos e tragédias do cotidiano, ocorridas em um só dia, em Dublin, um dia que se fez tão famoso, mesmo eterno, que a data 16 de junho, é, religiosamente, comemorada, celebrada, discutida em todo o mundo.

Trata-se do dia 16/06/1904 (personagem de um relato épico do século 20), que o romance de James Joyce retrata, desvela, mesmo disseca, em todas as suas nuances e trivialidades mínimas, detalhando o comportamento rotineiro, óbvio, prosaico e heróico (inclusive erótico) de pessoas comuns, suas relações e solitariedade, isto é, as férreas conexões da solidão dos homens, imersos no dia-a-dia de um único dia, que se eterniza, graças ao talento ficcional de Joyce.

Centralizando a narrativa estão as experiências e o cotidiano (de um só dia, a partir do qual se plasma, quem sabe, todo o século?) de um único homem, Leopold Bloom (e sua mulher, Molly), que se tornou o personagem da ficção mais detalhadamente exposto de toda a literatura, mas também – e com efeito –o mais generalizado.

Bloom vê o mundo com uma acuidade impressionante. Seu ângulo de visão é de tal modo objetivo e detalhado – a ponto de poder-se retalhar o seu dia – que todo o romance se desenrola sob o olhar ou o comportamento desse indivíduo típico e atípico, simultaneamente, como condição de forjar-se esse modelo excepcional de personalidade ficcional.

O antípoda de Bloom, pessoa dotada de uma rígida consciência objetiva, mas incapaz de discriminar o mundo ao seu redor, como substância distinta da sua, isto é, igualmente objetivo, dada a sua concreticidade, é Stephen Dedalus, cujas características psicológicas traduzem ou conformam uma pessoa de mente seletiva, subjetiva e manipuladora, sempre em busca de uma identidade, além da sua natural miscigenação com o mundo, com o qual se confunde, mas não aceita, podendo-se dizer, rejeita objetivamente.

Na verdade, a narrativa é apresentada sob a estrutura da versão  popular romanizada do poema de Homero.

Definem Ulisses como um omnilivro, produto de uma loucura heróica, fruto de uma desproporcional grandeza de espírito e vontade nietzscheniana; um livro que contém a vida humana em todos os mais alucinantes, chocantes, triviais, e mirabolantes detalhes, mas que não se inclui em nenhum deles, porque é uma perífrase, narração de uma realidade paralela, termo de comparações entre situações simbólicas, transfiguração, palimpsesto de Ulisses, de Homero.

A Divina   Comédia, Hamlet e Fausto, de Goethe, igualmente são modelos ou espelho simbólico de Ulisses, o que demonstra a amplitude e riqueza do conhecimento, da erudição, do delírio e da imaginação de Joyce.

É de tal monta a empresa, o empreendimento ficcional é tão fantástico, que havemos de recorrer a uma palavra-valise criada por Joyce, para descrever o resultado de sua opus magna: teolologicofilológico.

Alguns classificam Ulisses na categoria de epopéia moderna em prosa ou paródia de novela épica. Nele, desfilam o espírito de uma época, os demônios familiares e as triviais paixões humanas, as veias nuas de uma nacionalidade, o quadro histórico e dialético da humanidade: 16 de junho é o dia em que se fundem passado e presente, na tarefa de fundar o futuro, abraçando os últimos 2.500 anos da vida humana e os 200 anos seguintes, no mínimo.

Quanto à amplitude temporal da narração, pode-se fazer comparações: Homero limita a ação a uns poucos dias, ainda que o pano de fundo, a guerra de Tróia, tenha durando 10 anos, percorrendo sua narrativa épica âmbitos variados e díspares, como o Hades e o Olimpo, no caso da Ilíada. Na Odisséia, viagem de retorno (nostos), que dura 10 anos, a narração se concentra em cenas temporais curtas. Leopoldo Bloom, o Ulisses de Joyce, parte da 7 Eccles Street para só retornar ao final do dia e do romance, após viver uma galáxia de eventos.

A peregrinação de Dante abrange o céu, a terra, o limbo, o inferno, os corredores brancos e desolados do pugatório, até o umbral de sua casa florentina. O Fausto também explora locais como o céu, a terra, o inferno, a história, bem como a sociedade de sua época.

No Ulisses, viaja-se pelo subconsciente do gênero humano, com suas estações desoladas, sombrias, esqueléticas, em que se retratam episódios de ira, vaidade, desespero, de dúvida metafísica, de banalidade fanática, de neurose e náusea pelas coisas do mundo, de ridicularia da vida comum, especialmente pela via do lado cômico ou do viés paródico da narrativa.

No intervalo de 24 horas do dia 16.06.1904, em que se locaciona toda a ação do romance (de 852 páginas), o tempo é parte da trama, sendo fundamental sentir em que momento ou janela temporal do dia (eterno ou secular) cada personagem emerge, a exemplo de Molly Bloom, que, às três da manhã, do dia 16/06/1904, se levanta da acachapante cama para agachar-se sobre um urinol com franja alaranjada, que, segundo Bloom, só tem uma asa (feito um anjo maneta de espesso alumínio elaborado).

Situação que contrasta com o momento mais sublime do romance – e tecnicamente perfeito – que é o monólogo de Molly Bloom, a adúltera e enternecedora mulher, de cujo fluxo de consciência brota a essência do romance.

É impressionante o quanto se escreveu, nas Ilhas Britânicas, na Europa, nos Estados Unidos, especulando sobre os possíveis símbolos escondidos na cena do urinol de Molly alaranjado.

É também curioso, em Ulisses, vermos que não ocorre nada de especial importância, nada transcendente, curioso, exótico, de suspense, perigoso, nada aventureiro, heróico ou misterioso nesse dia, igual a outro qualquer. Durante esse Bloomdia, em que não se passeia pela ruas de Dublin, nem se vai a monumentos (descontado a viagem ao urinol de Molly), simplesmente decorre a Vida Humana, em sua essência prima, em sua substância legítima.

Dublin, a cidade natal de Joyce, é, em Ulisses, o pano de fundo da ação, uma projeção dos protagonistas virtuais – Tróia e Micenas, Ítaca e Álbion, constituindo, também, a capital da República da Irlanda um dos principais personagens do romance.

Nenhum leitor moderno, que realmente e culturalmente habite o século 21 – não apenas com o corpo físico (bem malhado e gracioso,  nem gordo nem magro, de carnes) mas com o espírito, com a malha de sua alma em riste; nenhuma pessoa, que adote o título de medianamente informada e capaz de entender o labirinto romanesco do século 20, pode aceitar ou afirmar que não leu o Joyce, de Ulisses, ao lado de obras tutelares, como Grande Sertão; Veredas, a Montanha Mágica, a Morte de Virgílio, Auto de Fé, Cem Anos de Solidão, Eu, Supremo, Tocaia Grande,  A Pedra do Reino, entre poucos.

Também, é incomparável a delícia de identificar os paralelos com episódios de Homero, da Odisséia, como Telêmaco, Nestor, Proteu, Calipso, Hades, Olimpo, Éolo, Sereias, Ciclopes, Sísifo, Nausícaa, Circe, Eumeu, porqueiro de Ítaca, Penélope, bem como suas correspondências com a cena (e a hora da ação) e com os órgãos humanos (rins, genitais, pulmão, coração, sangue, ouvido, olho, útero, vísceras), entre outras.

O Ulisses é todo simbologia – e esse é um dos encantos profundos do livro – ou seja, o que representa esse status mítico, hoje. Flagra-se também a correspondência com a específica e surpreendente técnica ficcional que Joyce utiliza em cada um dos 18 capítulos do livro, e que mantêm uma simetria admirável.

A contingência, a fluidez do acaso, o aparente decorrer de coisas banais e insensatas, tornam fluidos os sentidos dos fatos narrados, o que não equivale a tornar o texto sem sentido.

Dois momentos narrativos de Ulisses são clássicos: os capítulos  compreendendo a narrativa que vai da página 704 à 852.

Após uma série de cenas e atos da escritura sobrecarregada de interrogação, sob a égide de uma aparente razão anárquica estabelecida, que ocupa 93 páginas, do número 704 à 797, explode o inimaginável, magnífico e inusitado monólogo ou fluxo de consciência, técnica narrativa complexa e sublime, garimpada em Freud, de que Joyce é mestre supremo.

Iniciada pela indagação onde?, o monólogo de Molly (de um só fôlego, e que também consome o fôlego do leitor, pelo deslumbramento e catarse que opera), jorra por 54 páginas (da 797 à 852), encerrando o romance.

Paralelo ao mito de Penélope, esse magistral monólogo final é dividido em oito segmentos, sem pontuação nenhuma, iniciando com a celebração de uma tarde de amor com Boylan (o amante). Patente é a qualidade poética da escrita de Joyce, sendo exemplar, nesse sentido, o monólogo de Molly Bloom.

Quanto ao Bloomsday, que a UBE vai, integrando-se a milhares de eventos similares no mundo, viver, comemorar, no próximo dia 16 de junho de 2003, sua história começa em 1965, quando o irlandês David Morris, senador e conhecido acadêmico, joyciano fanático, do Trinity College, criou, em Dublin, o Centro Cultural James Joyce e o Bloomsday.

O Bloomdia ocorre em todo o mundo, sempre no dia 16 de junho, dia em que se passa a ação de Ulisses; virou atração turística e evento cultural, em Dublin, no início, e passou a ser comemorado  em quase todo o mundo, universalizando-se na cultura ocidental.

Em São Paulo, o Bloomsday é vivido a cada ano e, no Nordeste, em Recife, na UBE, no próximo 16 de junho, aberto ao público, intelectuais pernambucanos e de estados vizinhos daremos Bloomdia ao Recife.

 

 

* Poeta e Presidente da UBE-PE.

 

 

 

 

 

 

Murilo Gun

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