Confesso a noite como confesso a Deus
a dor de ser (vital incrédulo, hiato deserto).
Vim pela vida abaixo como lâmpada morrendo
alastrei manhãs de dor ingente
com meu coração escuro encarei a noite
sinto noite cega aferrar-me o rosto
a inocência beirando latrinas
pálidos lábios de trêmulo encarnado
escarnecendo dos sorrisos
porque amaram esgares
sinto rutilarem em mim
e no meu ser latir metais da alma
de amor hermético me arrodeio
cóleras pulsam em meu sangue como cães
luzes em minhas veias anunciam a morte recente
as órbitas dos meus olhos profetizam escuros
meu rosto rasga-o lâmina urgente de solidão
face deserta assemelha à lívida pele
enodoada de dor e sulcos agônicos
a cortam como arados terra ingrata
fundura dos incêndios lambe-me sempre
(e a morte que não conheço me orgulha)
por isso preciso amar-te até morrer.
Quando Deus destruir meu rosto
irei à sombra sem face
que suplicia a cútis de uma abelha
borboleta, pirilampo, verme alado
alento de pele
somente encontrarei máscara
de pedra extinta e escura
parecendo escombros de lua sem ventre.
II
Poesia que me arrasta
contra o mundo sórdido
avariado e incrédulo
de ocidente a oriente
poesia que seja vaticínio
arrancado das entranhas do último príncipe
como larva enterrada no último déspota
como pássaro aberto da víscera do arúspice
ou dos amplos rins dos áugures de abril
(de cuja predestinada crueldade aprendi a vida).
Abandonei o ímpeto, o dínamo
em mim morreu
forjas afoguei-as todas no suco de gusa
a imaginação deixei ao relento de mim
remi toda a saudade
das esperanças desisti
pois nem um tom é maior que o desespero.
A elegância delicada de viver ou morrer
desprezo e confesso à pedra minha dor
maior e ao arbusto os sonhos vãos
a greda como coração me tornou ser
de pedra e solidão sem órbita de perdão
nichos de palavras revolvi
vasculhei os escaninhos da alma verbal
(confrontei seus metais insones)
porém as fúrias e os sons não fugiram
como o fervor me abandonou.
Entre amor e morte não me decido
noite irmã, o que faço
para deslindar dilema sórdido?
À regada luz do quintal dos olhos
que imite a lua e sol despreze.
Todos os extremos me aproximam de ser.
Das marés oníricas não encontro
escapatórias nem dos soluços ou lágrimas marítimas também
nem marés de revoluções me libertam
se não mais me adenso é porque sou árido
eternamente deserto de mim mesmo
por isso confesso a noite a cada dia
o não orgulho de viver
exposto a manhãs perversas
e a promiscuidade da luz exposta à escura censura
(o que de mais raro tenho:
vital rosto).
Os tecidos dos discursos se desfizeram
como fios impiedosos das astutas parcas
se desfizeram as tramas espúrias da alma.
Espírito já não resta
da sombra ficou rastro
da dor, nada: ou restou alguma lágrima?
Tal não confessaria a noite
porque ela é inconfidente
(perita em aleivosias
e escuros cardumes).
Se não respiro lua, porque amo
diz-me noite sem limites?
Se não creio em harpa de anjo
para que me serviria música extrema?
Apenas do cristalino rumor da sombra
dessa orquestra de partitura fria
de Caronte me lembrarei, talvez.
(Além da moeda sublinguar).
Se não acaricio a túnica lunar
como música morta da terra
de que me revestirá a morte
para que fizeram-me as mãos?
Se o fogo da vida já não arde
se ferro da coração oxida a alma
nada aplaca existência do ser (num corpo falso)
em desfazer-se totalmente.
De minhas fugazes metáforas, noite
entenderás que a confissão é sem fim.
Da vida, senhora noite, do que em mim
quase não late resta
algum poente de ferro, algum
escasso anoitecer sem ventre ou data
certo crepúsculo de catraca
rastro de anelo falido
gritos de pedra dores lavadas
pelos grotões da alma
e parco alento estendido
ao longe como rio vazio
(cujas águas passadas congelaram o espírito).
Nó de sopro, ardência morta
inocência linchada (ampola argêntea)
mar sem boca ou olhar náutico?
Isso não conta? Indago à noite
confessora sem crase.