02
Sáb, Ago

destaques
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Não há porque duvidar
da severidade humana
mas porque duvidar
da humanidade do homem


cercado pela luxúria da ganância
e libidos aborrecidas no lábio

testemunha da impotente cópula
do remorso com a arrogância

porque poucas marcas restam
doeliotiano itinerário invencível

pelo peregrino Tâmisa (da morte pela água)
portando o sermão de fogo (no punho do verbo do tigre lampejo)

numa noite de duvidosa lua e ar árido 
céu enervado de nuvens terrosas.

Apetite não pode 
satisfazer-se só pela carne

saciado como a matéria o é
pela mecânica ou pelo intervalo

ou pelo espírito de cal sutil coberto 
ou cinzenta nuance apocalíptica

é o que se lê da folha que sibila
abandonou na tarde (e Tirésias viu como desígnio 
do céu olímpico e pálido)

durante o enterro do desespero
que rouxinóis escoltavam
féretro orlado de músicas de relva.

A catacumba era lírica
e os mortos por água
poluída hirtos estavam como um inverno
(e observavam a tarde se decompondo abandonada).
Algum cadáver 
que plantaste nalgum jardim, leitora

não ou tão pouco casta
irá brotar e talvez dará 
flores escuras

(e círios acesos irão
luz de alumínio lançar sobre cadáver) 

cão e ursa juntos irão
desenterrar entranhas nuas

para consolação do futuro
que nos escapa entre dedos como água

num jardim de lilases ilusórios
e jacintos agonizando

só a claridade do remorso
e a chama (já extinta) dos mortos

permanecem entre covas de cravos
e extenuadas hastes de dálias deliquescendo.

Cada vez mais que extirparmos 
o atemporal de nossas veiascruas
(e vidas menos)

cada vez que quebrarmos com primor
os dentes da temporalidade autêntica

mais a alma se desola
mais a sombra se arroga

se a certeza da salvação se reduz
o medo de ser aumenta
multiplica-se o temor de viver

(quando é o morto que nos enterra 
é que viver não tem sentido).

Futuro em breve será passado 
criança será osso abandonado.

E a infância data protendida 
destroço de uma vida.

O conhecimentos do que virá 
será o teu martírio, leitora curial curiosa

ahoranão mais chegará a ti
poisnão (ou já) desvelaste o maquinismo

da vida que é tempo (de pedra)
sepultado numa ampulheta corrupta

seao tempo cronológico
sobrepõe-se o simultâneo

perdeste teu sentido horário
leitora vazia (ou acrônica)

e não passas do trânsito.

Se o tempo é convenção
a morte é produto da mente.

Se Kant estuprou a camareira
(em Konigsberg) por que Lampe não o denunciou?

O passado vive em cada rosto
existe e é minucioso trator da cútis
e o futuro nunca será promissor
mas estado de perda, dano, medo.

A natureza humana é nossa derrota
(alienada como um anjo ou uma porta).

Vício a estrada mais larga
todo o salubre mera via estreita

dor companheira devota
temor ubíqua presença.

Vida merece ser vivida (não vívida)
morte único endereço certo.

(Entre as duas fatais datas
em tua lípide sulcada

leitora impotente
prefiras a última
que é a definitiva).

E quanto menor o intervalo
menos dores te destinasses
mais perto teu ser estará (de não ser mais - ou menos)

Teu estar foi-se 
ficou o cansaço
de ser (nada).

 

 

Murilo Gun

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