03
Dom, Ago

Poemas
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Recife, cidade adiada

submersa em sua mágoa

espaço sem corpo

só pedra, rio e goivo

trapo de sono

ventre de cio

 

 

plumas de cães sorrindo

lábios de brisa e lâmpada

de lua bebendo

capibaríbica voragem

 

apocalipses aquáticos

beirando o desespero das margens

água de ninguém

vento cangaceiro em congresso

na várzea do Capibaribe

manguezal Cardozo

enquanto caranguejo beija lama

de Chico balança a grama, o canto

titubeia arco lírico  das pontes

louco pêndulo

úmido encarcerado no torpor

emparedadas ruas pelos rios

encarcerado sol na aurora das águas

esgotada cútis

que edis conspucam

sucessivamente o voto

esconde o vício

escande o viço

das cadelas que enxmeiam

a rua da Palma

sabe a luxúria e a

de latim decora o frevo do espírito

a lanheza da cidade bifurcada no vestígio

o bulício das abelhas no pão doce do Pátio

de São Pedro dos Clérigos bêbados e enamorados

parece céu na azáfama da Criação

a parafernália do Senhor espalhada no chão

do limbo entre ervilhas e cebolas divinas

a tarde debruçada sobre

pontes de areias movediças e santas austeras

fragmentos da manhã despedaçada

raios de sol pugitivos

do útero do ocidente

buscando devoto abrigo

da cruz do Patrão à Igreja dos Martírios

o quem-me-quer da aurora

(mulher vestida de sol)

rua em que a imagem submersa

dos edifícios se avessa

e peixes habitam vestíbulos

como no poema que João Marques

cravou da sacada do Plaza que olha a Ponte

a reexistir o Porto

e sua sombra visitadora

das estivas e dos amantes

que a vertigem busque precipício

e o poema devore solstícios

enquanto urra

o muro de arrimo da solidão

da moça, emparedada em rua já velha

(mas não tanto como aquela

que nasce na Estação Central

e se derrama no Pátio da Santa Cruz

(que me proteja

incursão por espaços tão bravos)

cidade latina, paço de febres

colo de fedentina, sítio e sarjeta

onde atirar ídolos

onde abeirar-se do delírio

e conjugar espantos quando

desatino dormir com marquises

Recife medita e mergulha

(alinhava e palmilha)

no dilúvio do amor sem data

que trastes filhos o dedicam

a cidade reza

duas vezes ao dia

rosário de dores e rebeldia

nas tantas igrejas

e vária sacristia

que a magnificam

e os nus extasiam

beije adro que fiéis pisoteiam

com orações de milho ajoelho

a boca carpindo vaticínios

e preces de luz sem alumínio

sua saliva demore

nas pedras da avenida

Conde da Boa Vista

(em minha veia ninja Recife urra

viçam suas avenidas adúlteras

sombras iluminam nome, regaço

e território da alma urbana

depauperada pela violência

e pela propaganda).

 

 

 

Recife marítima e imperturbável

parede e meia com Olinda

a colecionar fantasmas (e levezas)

na Cruz do Patrão (vultos rezam

e dão a mão ao mar)

e na mandala do Marco Zero

(que erótico Brennand colinizou

com falos monumentais (glandes ítalas

meninos arrogantes e vitais)

Cícero procura noturna saída

do labirinto pictórico, da pitagórica pedra

retórica de cores e formas subversivas

que sua visão do mundo cravou no chão da vida

eriçados arranha-céus de pedra (césarlealina)

pontes verticais para o infinito do arrecife apontadas

Recife que mesura o futuro

da palma da mão pluvial

da ponte Maurício de Nassau vejo

futuro passado, a passado (batavo ainda)

perambulando pelos lusos dias

e da barcaça de peixes olhando o presente fisjo

poema que cravo na página

como martírio de palavras

coroa que Mauro Mota deixou

viva na Rua do Imperador.

 

 

LÂMPADA DE HOLDERLIM

(Lâmpada de Holderlin desnuda a lauda

ilumina o ínvio, prescuta enigma

revolver de Breton rende o poema)

 

Lâmpada de argila

lúmen de abelha

 

Candeia de brisa

itinerário de água

 

Curso de sal na ferida

fratura na alma fendida

 

Seda de sargaço

branco bordado da maré

 

Viola de lua

bandolim de ameixa

Nuance de cansaço

retrato da idade

 

Tempo demolido

vida reconquistada

 

A hora Tíutere

torna homem cordão

 

Cavalo marinho e seu lento

Tropel submerso

 

 

Poema cavalga ar marítimo

tropel das espumas a face de Deus

 

ondas parecem escamas brancas

de peixes enovelados com brilho pálido de estrelas

 

leveza do verso busca lustre de areia

rima lua com preamar de aveia

 

avessa viragem, clamor estuprado

indício de praça cheia, velho coração do povo

 

(vá à branca luz do sal que arreja

Peregrinos das calçadas de Boa Viagem

 

Leitora devoradora que linha a linha especula

com cútis da palavra e se apega sempre

 

à intranscedente passagem do verso presa

fácil da página, do seu sal negro e branca voragem)

 

leitora astuta aniquila romantismos apara

rebarbas condoreiras do campo da palavra poesia

 

lâmpada de Holderlin incandeia

tudo o que proclame o poema

 

rumor a paquiderme grassa

leito deserto da alma

 

grito e jângal habitam

estrofe visionária

 

lua inclinada sobre pátios e juncos

filtro da lua bêbado, escumilha de palavra

 

casulos de pedra chorando

gerúndios abandonados

 

no cadinho das sinédoques poeta

transforma figuras do ouro em pedra

 

viços em moças

seios em postes

fôlego das palavras cobrando

rígidos caminhos para extravazar delírios

 

solidão de neon e catraca

harmonia de amar estátua

 

cinza movediça e alada

no cotonifício do mar baila

 

do ubre da palavra extraio

leite para Via Láctea

 

Cio de Penélope é mortal para Ulisses

que se distancia de Ítaca

fruto e tugúrio natal

quanto mais singra sem rumo

pelos mares infrutíferos

da odisséia de sua alma

périplo em torno de si mesmo

(que o ônfalo do verbo declara

e a canina infidelidade de Penélope estraga).

 

 

(manso e crédulo

me conformo

com a impotência da vida

mas não creio no verbo

vem me aventuro no sexo

que freme das coisas).

 

 

VERDADES  ÍNTIMAS

O poeta moderno faz com palavras

o que V. sonha e não sabe

sente  e nega

lhe fuzila com o verbo

todo ímpeto de voragem da palavra

em V. metralha. Porta moderno

esculhimba com sua alma (pobre e mortal).

 

Procuro fazer na poesia

o que provável leitor deteste.

 

Meu leitor é improvável.

 

Dessa água impura da poesia moderna

beberei: diga

 

Leitor da poesia moderna ainda não existe.

Com as exceções da regra.

 

Quando desvairado leitor olhos lança

sobre a página que garranchos de poesia arranham

rumor de ruínas invade olhos e narinas

estepes vespertinas são estripadas

sarjetas sonham com céu aborto

velas envenenadas pulsam, cárceres azuis gritam

este poema é louco. Parem, parem esta pena

que pare na página virgem

palavras estripulando, algarravias, algas ruivas

algaravias, águas ávidas de verbal dilúvio.

 

 

POEMA

(Ao Rimbaldiano R. Generoso)

Barro trombeteando (cântico sáfaro)

cantiga de argila e pássaro

tudo se faz sombra

e aquário ardente

no lar Rimbaud do verbo

de cinza e sarça

hino e lamento

treva e iluminura

livro de horas espaçadas.

 

Rimbaud brandindo sua dor

pelos subúrbios e ravinas do verbo

pelas veias do inóspito sentido aberto

(cujo canto use para compreender constelações)

se prepara para embate

com voragem prélio do espírito

que de sua pena se desprende

brancos da página inundando

com tintas deletérias esfingéticas sílabas e êmbolos

com manchas de palavras

e figuras de enigmas ingratos.

 

RELÂMPAGO AMOTINADO

Relâmpagos amotinados sobre tardes reuniram-se

em torno de folhas de relva e vidro

instalaram seu concílio chamejante

congresso proibido a escuros e ventos

no páramo apocalíptico plantaram suas bandeiras

de fulgor e punhal, de lampejo e aljava

mastreadas de raios e partituras de trovão, pulmões de treva

(salsas assustadas buscaram tugúrio de formigas)

olhos das estrelas secretas piscaram

ante pálpebras sublevadas do relâmpago

mares tremeram, bosques se crucificaram

claridade inundou mármores e dores

incendiou lápides, nomes, golfos

de esperanças abriram-se dos vespertinos cemitérios

 

intermitentes fogos suplantaram olhos de estrelas

pupilas assombrosas enveredaram pelos estames das rosas

idades morreram, dos paiós brotaram

amorosos cogumelos, magnólias, terebintos

estercos iluminaram caves do infecundo

adobe tornou-se adubo, dúvidas certezas

floresceram acenos, sargaços, tulipas, coivaras despidas

ditames do coração párocos apregoaram do vazio

com volúpia com que fé os penetra, avassala

ou estupra eles transformaram hóstias em ditirambos

da cruz das orquídeas, do orgasmo das donzelas

cravaram sacrifício, amamentaram relâmpagos

que sobre tardes amotinadas desabaram.

 

Relâmpagos clarearam luas e poemas: náusea de palavras.

 

Enquanto relâmpago ovula luzes

germinaram narinas sobre aroma das fímbrias

sobre brancura das dálias, pupila dos lírios

tombaram sombras, gritos tombaram

amamentando o escuro seio cavo

harpas estrangularam salgueiros

cheiros da madressilva recrudesceram

enquanto relâmpago copulava com virgens sombras de ervilhas

no leito botânico do meio-dia

entre incêndios farmacêuticos da manhã

pendurada no apogeu do sol falso

e dos trêmulos e vermelhos canteiros

do convento anal mêntruo da aurora espalhara rosas

no fumegante jardim (em que relâmpagos amotinaram-se).

 

O que há de novo sob o sol

a não ser infâmia e falência

dos múltiplos sentidos da vida

(que repletam veias de uivos vivos)

que não seja fuligem (e mormaço viril)

que não seja pó (fumo e sombra de fumo)

ou anúncio de desespero azul?

 

Ancestrais empobrecendo

emblemas enferrujados

baronatos demolidos

escâncaras nuas

condados demitidos

províncias derrotadas (a la Borges cruel)

fastos pálidos

 

retortas nuas

lamúria cavalgando poldros de lamento

centauros em colóquios violentos com unicórnios gagos

corcéis e balé de sêmens no palco do útero encenando tropelias

projéteis de sumos disparados

violetas lápides violando ossos de dádivas

devolvidas a vasos sem lágrimas

flores de ureia brotando do escombros dos astros

e das cloacas do sangue principesco

empíreos abordados, botânicas estupradas

passado tímpano ensurdecendo futuro

diatribes assolando êmbolos, estribos cavalgando hinos

ossos das vozes sedas dos ecos

canastras anunciando novo sol.

 

 

CALE-SE ELÊUSIS

 

 

 

Assisto cálice de Elêusis

beber trago de abismo

órfico aborto deletar o instinto

Baltazar cego e estrelas fugindo

grangrena das lágrimas aviltando olhos

engrenagem da luz aberta

como porta de bordel francês

olhar de ventre impuro

silêncio estraçalhado por gritos plúmbeos

atanor resfolegando como monturo

metano digladiando com resíduos úmidos

lixos hospitalares hospitaleiros

ungüentos sufocados no plástico das camisas

que Vênus vomitou da lixeira da vida.

 

Assisto crepúsculo do logos

e núncio ou oráculo montanhoso

(com sua trombeta de alumínio e estanho nu)

clamar por novo apocalipse

comprimido no Livro de Mallarmé

(páginas onde Deus joga dados com o acaso).

 

A volubilidade é uma noite na veia

violentas colinas perfumam céu de abril

flauta que Pã abandonou decifra som de ossos e divos úmeros

que de minha estirpe restou como legado ao chão

que nos acatou (e a nossos amaros amores).

 

A barca da sombra transporta o sopro

para longe da alma, para perto da carne

perto do inferno que vive das veias sem viço

 

baralho dos guindastes une-se à sombra de gruas avaras

de que são feitas nossas almas e ruas do corpo

contêineres de alento desembarcam

de nossas vidas a cada hora do mundo ínfero (não dos homens)

naipes da sina estão abertos

cartas e mangas pertencem às mãos

(que algum deus nos deu com dedos do gatilho

sem espoleta de perdão).

 

A disponibilidade da noite é espúria

e o branco ar de tarde se contagia

do mênstruo do ocaso e vomita

elétrons e vírus no regaço noturno

na taça do íntimo do relógio do coração

que bate como escombros no chão.

 

POEMA ÉBRIO

Navio de bandeira brusca

súbito golfo do água funda na pele do mar

indomado

e branco fulgor despede da âncora

aprisionada

atraca nos violentos cais

onde veloria-se a noite eterna

feérica e carcerária.

 

 

Desembarca sua carga de cobalto

e guindastes feridos

enquanto o baralho das águas

abre-se da mesa do oceano

para o coração humano

casa maldita, parto sepulto.

 

 

 

 

SILÊNCIO E LASTRO

(cio de pasto)

Silêncio  impassível, quase sólido

ultrapassando pausas

e brancos sinos parados

ultrapassando

colhendo pétalas de gerúndios e amapolas lentas

colhendo da flor do grito

cálice escuro, lume findo

pólens tímidos

cios cinzentos, viços de abelha ilusos

todos os limites

do rumor e da pálpebra que soa

do sussurro da ofegante uva

do estalicido e da traqueia do hino

vencidos como prazo sem ventre

 

data esquecida

num desvão do tempo (num vão de trapo da hora azada) num tampo

da gaveta da escrivaninha do destino

num lavabo lúbrico da madrugada suja

numa bacia de hóstias indigestas

onde lua venha beber tristeza e desprezo

silêncio impassível e célere

excitado como maçã do éden

intransponível muralha em que estrondo desaba

o súbito perde ímpeto

inclinado vaso carnívoro íntimo

do úmido e do imóvel, do vago amigo  cúbico

silêncio que se acumula no clamor

silêncio imprescritível lavrado antes da pausa do poema

 

silêncio culinário, escravocrata do gemido

silêncio vasto, físico, lúgubre da eternidade

do vazio dos temperos intransitivos

da vilania do infinito

silêncio impotente, grito ausente

de nervos velozes e escuro lipídio

que aminoácidos do esôfago

e proteína do nítido não agridem

usina de uivos latindo na alma não demole

silêncio de pássaros mudos

e ecos proibidos

por decretos tíbios

de assembleias escuras

hábito de ser humano.

 

CONFISSÃO(5)

Bebi todas as mulheres

embriaguei todos os odres

assisti boda da treva com luz cega

testemunhei desamor

e armadilha da alma para subjugar o corpo

descobri quase ao morrer quando

aurora me negou aos olhos sua luz pálida

incansável logro da vida vivi

como sombra de um trapo

abdiquei do sol pelo alento da lua

domesticação da alma

rua perdida do mundo buscando poeta anônimo.

 

Como bêbados, namorados e mendigos

de uma palavra ou um beijo os poetas.

 

 

GESTO CONTRA

Ergo minha mão de relva

meu olhar vinícola

gestos de girassois

ao céu impiedoso (do Recife)

(que não nos protege)

espaço para o pássaro perece

posturas municipais enjaulam o ovo (e o novo)

que empalidece como sangue extraviado

árvores se tornam cinzas longas

fumo esbosca tréguas

carece de amor indomado o mundo

sopro se faz pó (mas não pó enamorado)

que vento sepulta

tudo se resume na palavra usura.

 

Ó NIRVANAS (VISÕES ABÚLICAS)

a Amy Dabliú

Vi Hendrix endemoniado e supremo

Incinerando a guitarra

Num estrado ardente do mundo

pirados sons subindo a céus ósseos

numa cena dum palco

incendiado de aplausos.

 

Vi o corpo de Amy vestido de bramante vermelho

entrando num caveirão londrino

a canção num caixão fechada

féretro da voz em surda procissão

casa do vinho despida da santa embriaguez

canto enterrado com a ilusão.

 

Vi Hendrix destruindo o som juntando

destroços da guitarra na cova do coração.

Ele experimentou todos os sons selvagens

todas as sílabas de sua guitarra grená.

 

 

 

“Todos os amanhãs troco

por um único dia do passado”

J. Joplin

 

A massa cefálica de Cobain

tinha cor de sonata

espessa como sua música louca.

 

23.07.2011

 

ÂNGULO DE VISÃO DO EGO

Os ângulos escusos do mundo moderno

(este que corre como rio em minhas veias

com trombos urbanos e cangas nos ombros)

me desarmam o gesto aritmético

vertiginoso do humano roe-me

por dentro da alma (rato íntimo) pelas margens esquerdas do espírito

quando tudo falsifica o dia

(e anos capricornianos se dissolvem

como névoa após inverno)

enquanto metais dormem sonos metalúrgicos

(sonhos de pedra e tório erguem-se)

e gusas do atanor se derramam irmanadas com cal

e os veículos da Jequitinhonha destroçam semáforos

atravessam a  noite, medula da madrugada moem

 

corpo suspenso como sinos do cego trânsito

em transe para outra vida sem limites

cadáveres aéreos plantados na campina dos circos

até que a gratuidade do sono me devore inteiro

comprimindo-me a mente

e à insânia que reste eu devote o abandono

ser a que me entrego nu como o início

à definitiva voragem, ao útero final me devoto

(desvairado servo da fome das horas, da usura dos evos

em passos largos caminhando para definitiva

devoração de mim mesmo

vital deglutição

prenhe de ácidos e decúbites).

Não só às paredes confesso.

 

SANGRO (A CÉU ABORTO)

Sangro pela lamentável aurora urbana

oxidada de dólar e trapo (de nojo e víscera fermentada)

de pressa virulenta alimentada

acicatam-na agonia senil, dor operária

ilusa vertigem do horizonte negado

a utopias rurais, olhos marejados de vergonha

e diesel falsificado.

 

Amo uivo dos trastes que transitam

(dos trâmites que me infelicitam)

nas avenidas indefinidas de mim, nos infinitos

desvão das errantes ruas do Recife

de minha indevoção, rios do sem fim e da poesia.

 

Avalio dano da manhã nos olhos portuários.

Pesar da hora que sol tempera (com sal de asfalto).

A cidade anônima violeta dói

na alma como cravo do pulso de Jesus.

Polvorienta, amestrada, cinzento ama desastre, incúria se salva.

Vegeto como cálamo infeliz (a que foi negado traço).

Suplico à sombra refrigério e redenção da máscara.

Peço vênia à Dor.

Albergue-me hora desolada. Terra comburida

lobo das veias salve-me.

Solidão para espírito tão sublime.

Noite etérea, não terrena. Overdose

de verdade na veia.

 

22.09.2007.

 

VIR (A NÃO SER)

Vim do deserto cinza onde

sede floresce como beija-flor em ruína

na papoula cega (lenta morte de mim)

filósofa debruçada

sobre cão de palavras

sobre ossos de silêncio enlutado

sinos carnívoros, sons abstratos

(rentes aos rins de Ulisses fritando

do espeto de Polifemo a saída do mundo)

como fada mal-amada perdida

num brunido eneágono vim beber vida

em regatos cobertos por abortos e orquídeas

toquei herege manhã de Dioniso (deus danado)

com mão anônima, lábio trêmulo

quando cheguei da tarde (ao cais escuro

que meio-dia abandonou)

desolada da margem deserta do nada

de onde vim, para onde voo sem mim.

 

22.09.2007

 

SEM TÍTULO

Escura voz perfura cerne

invade alma, fagulha grassa

rompe tímpanos de pedra clara

se faz voo e canto de dor amanhecendo

no espaço parco

que deixaram ao pranto

reservaram ao pássaro

os que beberam do odre da claridade greda impávida

ébrios de alvorada

(dos bêbados banhados vítimas das chamas mais ímpias)

num dorso deserto de estrelas

tristeza pousa

borboleta bêbada

do desespero das asas marinhas

 

do vinho das ribeiras, próteses do eco em riste

viço morto, aspas rompidas

hífen enfermo dos parênteses brancos do limbo

trema amputado, til ferido, vida

ávida de ser, além de alento difícil porto alegre

chama e cais, âncora  e ladainha do mar

num hiato de tempestade nau vazia  (esdrúxula nave)

vagando como água viva ou plástico usado

oboé submerso, porto sepulto

ávida dor adia tua dádiva vida

de ser palavra num poema

de Esse Quasímodo

(não na Paris deteriorada de hoje

mas Roma rediviva).

 

 

VIAJEM

Viajei pela gnose (sozinho) sem guia

a  não ser bússola do instinto

astrolábio do meu místico íntimo

e companheira dor (que a vida é)

percorri ângulos nada líricos

atravessei êmbolos e ermas bandeiras

defraldei suas sombras duvidosas

e espasmos de pano que vento provoca

corredores ímpios, cumeeiras santas

estendi a meus peregrinos pés

por íngremes e ascéticas sendas fui

velhos portulanos da alma guiaram

meus intrincados caminhos pela gnose

passei bem perto da eternidade

 

 

(trânsito de horas engarrafado

como sardinhas num regato)

 

Do lugar eternidade desvio

deveu-se a que ônibus que me viajou

não era da frota do infinito.

 

(Infinito, paralelo e irmão da eternidade, não

é meu amigo, ambos são reservados

filosóficos, sarcásticos, pastos

onde Deus não se demora).

 

“A morte é apenas recuo

do indeterminado diante de Deus”.

Artaud

 

De indeterminado deus

a morte é motivo

para recusá-lo.

 

 

DOENTE FILOSÓFICO

Estou com falta de ar:

chame Anaxímenes.

 

DOENTE HEPÁTICO ANTIGO

(num hospital de Mileto)

 

 

Sinto sede ardente

água, água:

acoda-me Tales.

 

Ir até além-sopro, abandonar

ribeiras do grito onde silêncio sede estagna

ir até pedra dentro do silêncio (bêbado)

encarnar vazio pleno

abortar o devido, o comedido, o exato

abortar o que seja

porque não pode mais não-ser o ser.

 

A puros do espírito desertar

(pois estão castrados do espúrio

de que se reveste o mundo).

 

Ladeiras para almas

que sonhem com viagem ao inferno

uma vez na vida (mas não a última)

estão bem lavadas

(brancas, prontas para a descida

– com forca e touca)

conforto escuro.

 

 

SEXO DOS ANJOS

(ANJOS SÃO MACHOS)

Pesquisas profundas e viscerais, estudos anátomo-angélicos minuciosos e precisas análises fisiológicas de anjos recuperados em escavações no céu, além de torsos, pistas bíblicas, achados arqueológicos, como esqueletos conservados de pré-anjos – do tempo fora do tempo em que Deus (nem o tempo criara ainda) ainda alquimista experimentava suas criaturas – levaram à descoberta sensacional (a própria NASA, além da CIA e da ex-KGB russa esteve envolvida nesse projeto global) de que os anjos têm sexo, sim. Não são assexuados, como se pensou por 2 mil anos.

Anjos são machos, têm barba, falo (não são bem dotados obviamente), são ébrios, exalam odor branco, alguns portam belos cavanhaques e, como são anjos, têm  testículos cândidos.

São criaturas que deram (e dão) muito trabalho ao criador. Tanto que um dia Deus se esgotou. São lascivos, brincalhões (mesmo presepeiros), muito maleducados (o que é incrível, considerando-se a pedagogia divina), desobedientes, matreiros, inconvenientes, em suma capazes da maior armação célica, com efeitos terrenos; andam em má companhia (juntam-se a velhos demônios (muitos expulsos do inferno de tão rebeldes) para noitadas no universo, farras cósmicas que duram eternidades, às vezes; troçam de tudo, são barulhentos e cheios de tramoias, enfim, enchem a infinita paciência de Deus (que já não os suporta).

 

 

Quando estão baguçando muito no céu, Deus retira-se para o limbo ou vai para um refúgio secreto, perto do purgatório. Leva suas legiões bem comportadas. Toda a corte dos santos, concílios de papas mortos, assembléias de santas comandades por Maria.

Foram os anjos, pasmem, quem inventaram desfile de misses, só com biquíni, top less, sexo grupal, entre outras modalidades mais carnívoras, e filme pornô e revistas com mulheres nuas. Inspiraram o pessoal da Terra (terráqueos safados) para a pornografia global.

Os anjos foram (e são-no) os primeiros alcoólatras do paraíso. São viciados em óleo de amêndoa doce e suco de uva bem fermentada. Como uva e maçã são frutas preferenciais de Deus e por isso abundam no éden (florescendo divinamente em seus amplos e fecundos jardins), os anjos fazem a festa, tiram, extraem desses frutos edênicos todo o álcool possível e ingerem (copos e mais copos, e no Paraíso tem copo que chega a conter 3 litros). E se embriagam dia e noite. E, imaginem, cada dia do céu é infinito e cada noite eterna. Corre à boca pequena nos labirintos célicos que não foi nenhuma serpente mas uns anjos sujos que viciaram Adão e Eva no  fruto probiido (eles, Adão e Eva, fazem vinagre de maçã bem forte e ingeriam com a mesma).

Quando Deus, cansado da baderna dos anjos, vai dormir, eles ficam farreando, fazendo altas orgias (sem trocadilho), baguçando o céu sem parar.

Deus, um dia em que não mais suportar tanta bebedeira e atos lascivos, é capaz de castrá-los.

 

PROJETO VITAL 10

Dou notícia de minhas atividades literárias no âmbito do PV 10, com um custo temporal de 3 anos. Inicialmente, quando deixei a presidência da União Brasileira de Escritores – UBE, reservei o ano 2009 para concluir a coletânea Palpo a quimera e o tremor (publicado em 2010) e preparar a 2ª edição de Só às paredes confesso (prêmio da Academia Pernambucana de Letras (publicada em 2009). O trabalho continuou, obras em progresso exigiam um ampliação do horizonte temporal estabelecido. De um ano, para dois, para três. 2009 a 2011. Em 2011, publiquei Ora pro nobis scania vabis e Ave sólida. Estão no prelo Bando de Mônadas, Crepúsculo do falo, Verbo de barro e A eternidade é inútil. No pré-prelo: Atanor, Lâmpada de Holderlin / Revólver de Breton, Platão expulsa poeta da República e A opúncia.

À direção do Centro Cultural Vital Corrêa de Araújo, encaminhei propósito de promover o lançamento de 10 livros de poemas em 2012. E iniciar o Projeto Vital 10 (2).

Murilo Gun

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