03
Dom, Ago

Poemas
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ULISSES

Só as paredes confesso: meu nome é Ninguém.

 

IR-SE

Vai-se rosto num vórtice supremo

(fica máscara vazia ao relento).

 

 

QUANDO

Quando eu estiver à morte

(ou a morte estiver em mim)

não deixem que estranhos

se apossem

do meu último sopro.

EU

Naveguei por abrolhos e vazios até longe de ninguém

onde quando então morrerei

à beira do cais do delírio

ou ao lado da alma de um quilha

no ancoradouro da loucura

perto do coração.

Há ímpias abelhas nas petúnias

nos pântanos do espírito fúria

 

Há ânsias de abismo nas cerejas

fugas de Bach nas igrejas

 

Há halos de esmeralda nos cálices

e míopes almas nas calúnias

 

Há sopro no barro das criaturas

e no cinzel do escultor canduras.

 

 

OITO POEMAS DE ONTEM

a barca dos sentidos conduz-me à alta volúpia do mar calmo

*

numerosa ira breve amor parca morte do poeta

*

rumor de mármore corre pelas têmporas das estátuas

adentra pátio grego onde heróis demoram-se

*

banal impiedade dos deuses

*

à rosa de uma boca madura

ao rigor de uma pétala de borboleta

ao trêmulo matiz de uma flor do outono

à lentíssima nuance de um púbis ainda impúbere

ao arrulho de uma madressilva no jardim do éden

*

à sombra de Novalis gemas louvam íngreme pureza da loucura

*

das cinzas da lembrança ressuscita o amor

*

a loucura é mineral

 

OITO POEMAS DE AMANHÃ

nas sepulturas equestres

ciprestes se esmeram

em balés prismáticos

 

imbricam-se

nasfiligramas metálicas dos pistilos

se derramam em cruzes gotejantes

*

nos túmulos simétricos eles abolem

góticos bailados e cravos esculturais

*

ao cão azul de Spinoza

*

a quimera suprime o cálculo

*

torpe realidade enjaula sonhos

*

a enxárcia ringe

*

línguas substituem o mundo por uma certa imagem dela

 

 

 

SENTENÇAS CASTAS

+++1

Ao primeiro brilho da noite saem

hostes estelares da morta

rota dos pássaros.

 

+++2

Vaga luz rasga sombra vesga e gasta.

 

+++3

O verbo não foi cego aríete

mas tela onde lanço ira e alento.

 

+++4

Lua brilha fundadora sobre ossos e sombras.

 

+++5

Viajando até a morte

até fúnebre norte

até íngreme sorte

ao íntimo negrume.

 

+++6

Aos vivos esta verdade anuncio.

 

Não nos saciam brindes de vinho

oferendas nuas orações sonoras.

 

Os que inda têm corpo

pensem nos ossos

e saibam: riqueza e gozo

palavras ocas.

 

+++7

Regozijam-se rosas

no trevo calendário

onde arrulham pássaros

amam severa dignidade dos círios

os que se inflamam

na noite vetusta intransponível.

+++8

A leitura dos obituários em voz crassa

não traz consolo nem desgraça.

Poesia se faz na cama como o amor.

Lençóis desfeitos são a aurora dos desejos.

(a la Breton)

 

+++9

Travessia da paixão à ilusão

é visceral instantânea, crua.

 

+++10

Há mais metafísica

no consenso entre dois amantes

do que grãos de areias nas dunas do Saara.

 

+++11

Coração detesta lágrima

se afoga em metáfora.

 

+++12

Às cinzas de Ninguém:

epitáfio de Ulisses

 

+++13

Libertam-me teus abraços.

Laços soltam

corações perturbados.

 

+++14

Tíbio dia sai da óssea manhã

despedaça tarde invertebrada.

+++15

Cinzas tornam-se os desejos

Dura cruz: o anelo.

 

+++16

Por vales selvagens bebo

cor úmida do seio

leite original

que mana dos sumos

e galáxias das coxas.

 

+++17

Por anjo de opala escoltado

voo sobre o ventre

ditoso das amadas

urdo diademas

de suas faces avaras.

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Murilo Gun

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