ULISSES
Só as paredes confesso: meu nome é Ninguém.
IR-SE
Vai-se rosto num vórtice supremo
(fica máscara vazia ao relento).
QUANDO
Quando eu estiver à morte
(ou a morte estiver em mim)
não deixem que estranhos
se apossem
do meu último sopro.
EU
Naveguei por abrolhos e vazios até longe de ninguém
onde quando então morrerei
à beira do cais do delírio
ou ao lado da alma de um quilha
no ancoradouro da loucura
perto do coração.
HÁ
Há ímpias abelhas nas petúnias
nos pântanos do espírito fúria
Há ânsias de abismo nas cerejas
fugas de Bach nas igrejas
Há halos de esmeralda nos cálices
e míopes almas nas calúnias
Há sopro no barro das criaturas
e no cinzel do escultor canduras.
OITO POEMAS DE ONTEM
a barca dos sentidos conduz-me à alta volúpia do mar calmo
*
numerosa ira breve amor parca morte do poeta
*
rumor de mármore corre pelas têmporas das estátuas
adentra pátio grego onde heróis demoram-se
*
banal impiedade dos deuses
*
à rosa de uma boca madura
ao rigor de uma pétala de borboleta
ao trêmulo matiz de uma flor do outono
à lentíssima nuance de um púbis ainda impúbere
ao arrulho de uma madressilva no jardim do éden
*
à sombra de Novalis gemas louvam íngreme pureza da loucura
*
das cinzas da lembrança ressuscita o amor
*
a loucura é mineral
OITO POEMAS DE AMANHÃ
nas sepulturas equestres
ciprestes se esmeram
em balés prismáticos
imbricam-se
nasfiligramas metálicas dos pistilos
se derramam em cruzes gotejantes
*
nos túmulos simétricos eles abolem
góticos bailados e cravos esculturais
*
ao cão azul de Spinoza
*
a quimera suprime o cálculo
*
torpe realidade enjaula sonhos
*
a enxárcia ringe
*
línguas substituem o mundo por uma certa imagem dela
SENTENÇAS CASTAS
+++1
Ao primeiro brilho da noite saem
hostes estelares da morta
rota dos pássaros.
+++2
Vaga luz rasga sombra vesga e gasta.
+++3
O verbo não foi cego aríete
mas tela onde lanço ira e alento.
+++4
Lua brilha fundadora sobre ossos e sombras.
+++5
Viajando até a morte
até fúnebre norte
até íngreme sorte
ao íntimo negrume.
+++6
Aos vivos esta verdade anuncio.
Não nos saciam brindes de vinho
oferendas nuas orações sonoras.
Os que inda têm corpo
pensem nos ossos
e saibam: riqueza e gozo
palavras ocas.
+++7
Regozijam-se rosas
no trevo calendário
onde arrulham pássaros
amam severa dignidade dos círios
os que se inflamam
na noite vetusta intransponível.
+++8
A leitura dos obituários em voz crassa
não traz consolo nem desgraça.
Poesia se faz na cama como o amor.
Lençóis desfeitos são a aurora dos desejos.
(a la Breton)
+++9
Travessia da paixão à ilusão
é visceral instantânea, crua.
+++10
Há mais metafísica
no consenso entre dois amantes
do que grãos de areias nas dunas do Saara.
+++11
Coração detesta lágrima
se afoga em metáfora.
+++12
Às cinzas de Ninguém:
epitáfio de Ulisses
+++13
Libertam-me teus abraços.
Laços soltam
corações perturbados.
+++14
Tíbio dia sai da óssea manhã
despedaça tarde invertebrada.
+++15
Cinzas tornam-se os desejos
Dura cruz: o anelo.
+++16
Por vales selvagens bebo
cor úmida do seio
leite original
que mana dos sumos
e galáxias das coxas.
+++17
Por anjo de opala escoltado
voo sobre o ventre
ditoso das amadas
urdo diademas
de suas faces avaras.
{jcomments on}