NA RETORTA DO TEMPO
Na textura do sal a pele da palavra
úmido atravessando a alma
(a travessia do sentido, a barca
da metáfora endiabrada, o mar
verbal revolto, ondas de metonímia
tempestuosas sinédoques assaltando a quilha da palavra).
O tempo reagindo com o espaço
a química demorada das horas
o sítio dos objetos sucedendo
retorcendo o cadinho das palavras a vida.
1
(Se espalhando do rosto para o vestígio
invadindo as veias, corroendo íntimos).
O poema mesurando
quantas esquinas tem o labirinto
quantas retas têm
rios paralelos
ante o mar finito
(e os dedos pálidos da aurora
que Homero descriou).
DEVER
Tudo deveria ser vertigem
e silêncio branco
tudo deveria extravasar sem dó
nada conter, desmoronar represas
tudo deveria ser deserto
nada de bosque ímpio ou rumor verde
tudo deveria não ser.
(Tudo foi anêmona e canção
e o homem não foi humano).
LEITORA:
Às sensações do papel quando
nele se instalam
sublevadas palavras do poema
Palavras fragmentadas em elo
sob cálices ambíguos ambrosiados: o poema
Chave sigilosa do mundo não tens
abres porta para fechar-te
só em alguma sílaba de pássaro sentes
estar em bando, cúmplice de alados ditirambos
ou repousando num ramo
de cisnes nadando em signos.
FIDUCIÁRIAS
o destino é carnívoro
é dos postigos fechados, das cornijas sem ventre
dos tímpanos dopados e do ubre dos abismos
que se ergue o abutre (o poema jamais)
no desejo do fruto o futuro da semente
guardado a sete impulsos carnívoros
só os fúteis e os néscios são místicos puros
há um aquém de tudo, muitos de nada
o além é feito de coisas finas e longas (postiças)
de rédeas de renda e corredores salinos
labirínticas luzes o anelam
nele assolam meandros subterrâneos
libidinosos gumes reflexos das foices lunares
fogo anímico da carne atiçam.
AO ABSOLUTO VÓRTICE
a Benn, G.
Breve o pássaro como a flor
a abelha, o fruto, o amor.
Como se vão o pássaro e flor vai-se
toda a formosura (eterna) do rosto.
Breve a vida.
ma(i)s breve ainda o amor.
A glória transitória da rosa
o inútil viço e rápido frescor
que valem?
Rosas brotam para a morte
(amaro aroma não dura, o carmim
logo desdoura).
Tudo o que é cínico (e breve) é belo.
O pútrido também é belo. (A lógica humana é infalível).
RECIFE DE MINHA COMOÇÃO
Recife, cidade sem corpo
só pedra e rio
e plumas de cães sorrindo
lábios de brisa e lâmpada
água de ninguém
vento cangaceiro em congresso
na várzea do Capibaribe
beija a lama e balança a grama
titubeia o arco lírico das pontes
louco pêndulo
único encarcerado no torpor
a lanheza da cidade bifurcada no vestígio
tarde debruçada sobre fragmentos de aurora
rua em que a imagem submersa
dos edifícios se avessa
e peixes habitam os vestíbulos
(imagem fisgada da poética
agreste de João Marques)
a reexistir o Porto e sua sombra estivadora
e a vertigem busque precipício
onde atirar seus ídolos loucos
onde abeirar-se de seus espantos quando
desatino dormir com marquises.
Recife medita e mergulha
no dilúvio do amor sem data.
A cidade reza duas vezes ao dia
nas tantas igrejas que a magnificam
beija o adro que fiéis palmilham, sua saliva demora
na avenida Conde da Boa Vista.
(Em minha veia o Recife urra
viça suas avenidas adúlteras)
sombras adornam o nome
território da alma marca o corpo
Recife marítima e imperturbável
a colecionar fantasmas e levezas
na Cruz do Patrão
e na mandala do Marco Zero
(que Brennand colinizou
com menires arrogantes e vitais
arranha-céus de pedra
pontes verticais para o infinito).
Recife que mesura o futuro
na palma da mão fluvial.
(Da ponte Maurício de Nassau vejo
o futuro passando, o passado
da barcaça dos peixes olhando o presente).
VISÃO E VERTIGEM
Velórios aprendem a chorar desde pequenos
a solidão do féretro enriquece a dor
funerárias amam a morte
lápides são caladas por natureza
(se de mármore urram
se de granito berram).
Lapidado silêncio nelas se talha
1. entre o nome infausto e as duas datas.
2. As profecias temem o futuro
a hora denuncia as trevas do homem
desenovela suas almas confusas, exibe
3. a carcaça do triunfo, a máscara nua.
Um relâmpago caiu no rosto
do boxeador nocauteado pela luz
4. pelo sal do punho alçado à lona.
A noite oculta pássaros
5. e a lua beija flores.
6. lupanar só no pós-inferno. (da modernidade).
Ponteiros dos relógios dançam para o tempo
7. (incutem pressa nos dias).
Na porta do purgatório um guarda
recebe almas pesadas e avisa:
o limbo é do outro lado
conforto aqui é limitado
(no céu, quem sabe? Arrisque!)
aqui não há sauna nem bordel especial
(diversão para almas só no inferno real)
atenção criatura sem ventre: embrulhe
os pecados veniais com os imortais
arrume-os cuidadosamente e anote a quantidade exata
na etiqueta que sobrou dos corpos
coloque-os na panela lauta da áspera sala de espera
da entrada principal do purgatório esquerdo
deixe-os apurar (e parir) para bem purgar
e não sonegue o rosto
8. à verdade que pulsa no fogo.
9. Purgue pecados à custa dos olhos da cara da alma.
Quando chove estrela
bem abro os olhos
límpido sinto
o ser da pestana sorrir
e a música da íris
10. me encanta o céu e o sal
O horizonte vive de enigmas
filosofa indagando:
de onde sai o mar
por que não me submerge submisso
por que o sol vem da água
11. se a luz é tão alta?
12. Rouxinol trina para as rosas.
O magistrado-mor do Juízo Final
não é cego nem usa mordaça
é árido e severo
quase não perdoa
13. corruptível como os anjos.
LÂMPADA DE HOLDERLIN
(A lâmpada de Holderlin desnuda a lauda
o revólver de Breton rende o poema)
Lâmpada de argila
lúmen de abelha
Candeia de brisa
itinerário de água
Seda de sargaço
bordado de beira-mar
O poema cavalga o ar marítimo
o tropel das espumas é a face de Deus
ondas parecem escamas brancas
de peixes enovelados no brilho das estrelas
a leveza do verso busca o lustre da areia
rima lua com preamar de aveia
(vá à branca luz do sol que arpeja
peregrino das calçadas de Boa Viagem
leitora devoradora que linha a linha especula
com a cútis da palavra e se apega sempre
à intranscedente passagem do verbo presa
fácil da página e do seu sol negro)
(leitora astuta que aniquila romantismos
e rebarbas condoreiras do campo da palavra poesia)
Lâmpada de Holderlin incandeia
tudo o que a poesia proclame:
rumor a paquiderme grassa
no leito deserto do poema
grito e jângal habitam
a estrofe visionária
lua inclinada sobre juncos
o filtro das flores bêbado
casulos de pedra chorando
gerúndios abandonados
o fôlego das palavras cobrando
caminhos para extravagar a voragem
solidão de néon e catraca
harmonia de amar estátua
cinza movediça e alada
no cotonifício do mar baila
A SOLILOQUIAR VOU
(Confissões do poeta)
A soliloquiar voo, pássaro sutil
de canto inclinado ao levante
ave de grito debruçado no lenho do poente
em mim mesmo me ensimesmo
(o que não sou é o que (não) sabes
oprimente leitora, dona absoluta e impiedosa
da palavra devoradora e proprietária do sentido)
contrito me deparo com o infinito
e se já não sou o que digo o ego oxido, jugulo
o logo(s), fundo delíquio me golpeia, aterra
me subita o pasmo, o sega me decepa
mas resisto até o último hemistíquio
até o próximo capítulo da rosa resisto
ululo como as libélulas pendulam
sob a vaga lua que o crisântemo aclara
(minha voz eco cristalino dilacera
se as pausas não demoram no enquanto moro)
leio enquanto o intervalo dura ou o pássaro
do poema ondula ou a algazarra da gangorra atura
alegorio uma mulher vestida de nu (a Clizia de Montale).
Enquanto silaba o vento no eucalipto cochilo
(o cachecol acalenta a jugular enquanto)
me ensarilho na seda do apuro
na captura da manteiga me amacio
na pausa do hexâmetro durmo
enquanto empedernida a rima o eco me alcandora.
Enquanto eu soliloquio tu coloquias
a hexametrar linhas me dedico
como a um suplicio.
APÊNDICE AO POEMA
Levante: pódio donde a luz do sal
com o arco crepuscular dardos atira no azar
e insípido rosnar de brilho
sobre mácula ou sobre vestígio atira-se.
Poente: adro onde luzes pastosas como cães
e sentimentos noturnos uivam-me
para olhos humanos enternecerem (ou só cegar)
sítio donde sombras começam peregrinar
cesto onde almas buscam cores para camuflar.
ADENDO
A oliveira do bico despenca, fica-me
lábio do vento e canícula, sede do árido.
Se flagele ao escrever e
não dê bola demais à sintaxe
(ela desperdiça seu gol)
azul obstinado ame: leitora.
Monologo e coloquio para
que o poema urja ou suja.
O RIO QUER MORRER
Há tardes que sinto do âmago da tinta
do voo oblíquo das sílabas acalento a alma
há tardes em que sento no coração do rio
sinto como sento na oração aquática e crédula
do rio olho água passando (colho líquen perdido)
vejo o futuro que passa correndo
enquanto a tarde beija rumor escuro
(dos últimos pássaros clamor alado)
vindo dos dias de claridade que acabaram
a margem tíbia do sono destruo
(para que insônia não prospere sobre pedras
mas se assoberbe dos olhos dos homens)
lodo invade as narinas de outubro
flores enterradas em setembro urram ainda
mugem as engrenagens da alma (escórias sonham)
(catracas amam rolimãs úmidas)
ao molhe das sombras aporto e sinto
o ego que arrasta trevas para si.
O rio quer morrer.
(Se algum dia cruzares a raiva
se o sal da veia uivar
e o mais alto do céu ruir
já podes morrer
imprevisível leitora nada amena
mesmo antes de leres
este estúpido poema.)
DE FLORES, POUSO, POESIA
Caracol é especialista em paciência.
Mário Benedetti
Flores relincham de volúpia quando
borboleta as visita.
Flores urram no velório quando
mosca as incomoda
ou quando abelha pouse distraída
no lábio (imóvel) do morto.
(A poesia é prova
de que os meandros da consciência
são cegos, vagos, estanques, supremos).
OUTROS POEMAS DE
VITAL CORRÊA DE ARAÚJO
COLIGIDOS POR CLÁUDIO VERAS
A PALAVRA MARAVILHA
Chegar à noite e torrentes
de ouro noturno
como veio ou uivo correr
gargantas dos filões percorrendo
desembarcar louças nascentes
do cais da aurora ou do útero da treva
e na veia das minas de água rural
pousar bateia, escavar brilho selvagem
beijo chegar às áridas jazidas do lábio
úmida baía onde pousar desejo
porto para desesperanças acesas
desembarcar do cais das desilusões restantes.
RAIZ DO VERBO E USURA LÍRICA
Poema
moeda cansada, útero monetário da palavra
esperança que lastro de culpa espalha
pelos lixões e cofres da alma
sina deletéria da verdade (bursátil e esplendorosa)
flor demolida, beleza aviltada da página
voz esquecida, prece escarpada
dos labirintos de basalto do grito sustenida
graça rupestre, silêncio que cobiça o olvido
usura que rumoreja dos precipícios bancários
da palavra às profundezas iníquas do mistério
lucro do escombro lírico, folha de cálcio e cilício
ágio medido, pregão de acrílico, relva enlouquecida.
POESIA APENAS
Viram-me descer ao vale
(sombra parda arrulhando)
estando a pele do coração
imóvel e calma
(como lobo enevoado)
como laje de tumba.
Lautréamont
Quando Maldoror estuprou a jovem grega
em cujo colo dorme a sombra do plátano
começou a poesia dos últimos tempos:
apocalipse do verbo, dilúvio de chamas
data ajuizada, decibéis da besta desabalados
sílabas do sopro sufocadas
para fogo eterno água infinita.
Após a declaração poética da rosa
cujo viço hipnotizou a narina do cão
Maldoror incita o buldogue do verbo à devoração
(cadela de vocábulos solta na jaula da página).
Como qualquer cão que prefira a violação
(rima torpe), o da palavra (cólera branca)
rasga o estame da lauda, néctar púrpuro depreda
abandona o cálice sangrando
todo o jardim despreza (rosa despedaça)
nos lençóis de pétalas deixa
sêmen carnívoro dos dentes caninos.
Curioso Maldoror recorre
ao canivete americano de doze ímpias lâminas
debruçado sobre o belo púbis
ira de prata apura
na colméia do mal
revira a jovem vagina
para retirar órgãos
através da espantosa abertura
(portal por onde a humanidade desfila)
e procedimentos tétricos opera
até que o corpo
frango esvaziado pareça.
(Paródia, documento clínico, lirismo noir?
Indaga Roberto Calasso).
Apenas poesia, respondo.
ÚLTIMO POEMA
(declaração final ou
sopro vencido do barro)
“Que homem debruçou-se
sobre o rosto do filho
para refletir
como esse rosto absorverá o seu
quando frio ele jazer?
Rossetti
Aos caninos da terra entregarei
meu corpo breve
(e às tenras carnes da alma
imponderável e leve como ave)
o barro já não contém
mais sopro
os ângulos do coágulo esmoreceram
os retângulos do sangue
estão pálidos
a mônada já supura
nada impede a morte falha o ato falho
e infalível,ditame irrevogável, atra passagem aborta
(a Deus talvez a Dama Inglesa atenda)
dom de assenhorar-se do poeta
e assim fazer (se) o último poema.
AO LEITOR
Leitor faça alguma coisa, desista
de penetrar o poema, essa verbal vagina
assedie-o, leia pela beirada, salte o obstáculo
ultrapasse a medida, reaja, avive, liberte-se
das grades do desejo quantitativo
do anelo aritmético, vício da trena dos dedos
incinere dores e pássaros, as rosas do pranto devore
faça voar a gaiola sem voo dentro
varra também o tapete (com a pátina do inconsciente)
bem para longe do lixo da alma (a página)
para além dos olhos (ilegíveis), exegéticos extremados
amamente bois mecânicos, abismos ruidosos
galos coesos, mitos e fantasmas enfrente
manipule pêsames brancos, ossos de baunilha
covas de silêncio, vórtice de abelha
para poetas herméticos fabrique
lenços para adeuses inconsúteis (ou provisórios)
incite máscaras de lástima e nuvens
para dias de nojo ou enjoos sujos
engendre ultraje ou corteje
sombra de gasômetros
alimente precipícios com rações de escuro
com célica perícia sonde anjos e palavras
extinga cotonifícios (ou os incendeie com candura)
blinde o sentimento, acosse o íntimo
cultive a chama farmacêutica
não deixe nunca cair da mão direita
a candeia esgotada da verdade poética.
PS.
Nunca abandone o poema
em meio a um aparente eito
de sem sentido que beire a página.
Mantenha os olhos por perto do verso
mas distantes da lata de lástima
do vaso de pranto que o poema ultrapassa
evite o ditirambo magoado
e o desespero escrito.
QUATRO POEMAS AFÍSICOS
Sustento e leveza com algemas
de lírio, elos de rosa, hastes de mirro, ângulos
grossas correntezas de luz
à imóvel lâmpada dirijo.
Bula de hipocondríaco é bala.
A luz do vaso leva ao calibre
do colibri alado candelabro da canção
(do seu cantante coração rubra
salta a manhã).
No quarto desejo o corpo dessedento
bilhas de sede lábio entorna
a dor do despojo orna o leito
onde morte não dorme.
K E A T S
Tua fronte rege o lírio
a umidade da angústia baila
e o orvalho febril
ronda o nu nome
a rosa do rosto cessa
murcha toda a forma
o contorno morre.
( tradução VCA)
TRIBUTO AO OSTRACISMO
Ao monte Testáccio
erguido com os cacos
das ânforas onde se colhiam
tributos de todas as nações
do Oriente e do Ocidente
devidos à soberana Roma.
Às colinas brotadas
dos restos das conchas de ostras
que mãos exiladas empunharam.
POEMA E OFERTA
“ o crepúsculo é um violento
pavão verde
delirando em ouro “. Lugones
Quantas laudas de espelho
e quilômetros de eco
o rosto gasta (da mulher)
na busca da máscara
do logro, do látego, da jaça
da beleza insensata?
A PROVA
Econômica
Há vagas
para máquinas.
Não há vagas
para homens.
HERÓI
Herói elabora
cume e queda
ao cair
erige abismo.
Herói dura
o tempo da queda
persistiria se a hora
não erodisse o pedestal.
POÉTICA
Vinho da palavra
chama-se metáfora.
Sua embriaguez
poesia.
SEIOS
Seios são rijos
deuses redondos
para culto
alpino do lábio.
São canções de carne
que mordem a boca
e encantam
a alma da mão.
DE LÁSTIMA É A PELE DOS PUSILÂNIMES
A uretra dos monges é tranquila
o avanço da úlcera severo
Atônito o futuro dos condomínios de luxo
dúbia a memória do escombro
Azuis as vísceras do enigma
vítrea a ira dos alcoólatras
Tênue sina dos insensatos e a pele
dos pusilânimes de lástima
De lata alma de déspota
de mármor sono de estátua
Berço da escória incêndio
ruína do rosto o tempo
Último sopro apaga o mundo
tem a espessura de um segundo
Fôlego dos moribundos fraudulento
gesto do gato veludo atento.
VIDA DOS OLHOS (HINO DE FUGA)
Como lume e sal olhar sega a pele
retalha sol navalha a fio
manhã seivando ainda o arredor
(de pássaros encaracolados no fio do canto
voo esculpido da alma do barro
ária da veia abrindo sonatas do sangue
sino rural peito de campânulas abrindo
pétalas de som voando entre taças de flor)
velho sortilégio da vida impondo à pedra
privilégio do hino, virgem círio
iluminando o hímen, estame acúleo
ótico urdume do meio do amanhecer
imersa bacia onde trêmulo carmim
corrompe a íris do meio-dia
selvagens azuis e azeites ermos
(que o silêncio açula)
a velhas lágrimas do poema aludem
(enquanto o parto das rosas escoa
pelos caules tristes, pelo cerne vivo
– e cardos da comunhão.
Dois vícios brotando de altares escuros
seivas e lumes pousando no delírio de antúrios
horda de andorinhas descendo sobre o mundo
eternidades vazias flutuando no espaço púbico
que o infinito delimita dentre sucessivos cios
gôndolas dos relógios moles do mundo
a Dali assediando, salas de um tempo mágico
encenando o futuro – e as dores que virão
verbo espúrio aviltado revoltando
a veia do poema pendulando inteira
entre ressurreição do lodo e escombros nus dilema
(que navega ente o que é e o que não foi)
eco que eco cega, cal que uiva, puro muro
florescendo entre palavras (e dentes de sílabas famintas)
que dormem na boca inconsciente dos homens.
AINDA
(aos filhos Cláudio Netto e Murillo Gun)
Sete poemas para o neto (ainda no útero do futuro)
longe da dor do real, da angústia viva
distante ainda dos percalços e das lacunas
dos emolumentos da culpa incire
da indigna realidade distante ainda.
Feto e uivo, urdume e lampejo, oração e usura
hino e tâmara, vinho e gema, claridade nua
tudo do extraviado fóssil do futuro trago
à luz desse labirinto esgotado, eneágono ponteagudo.
Bisão rigoroso paste o silo ávido do horizonte
cardume de sombras embriague páramo inocente.
Bosque doloso (irresponsável ante o homem, seu senhor
que conserva com virulência seus pássaros e ramagens).
Silêncio virulento apressado rumor rompe
(e cálido grito corrompe).
Da borda da entranha medito, perscruto
a têmpora do poema, o sacrifício.
O poeta desce os úmidos degraus da palavra
(escorregadia, sentida, teatral, adjetiva)
segue a escada onde terminava o anjo
aproxima fontes, toma partido do lume baldio
e das facções das coisas (que o escuro do mundo não perdoa)
à borda respirável ainda recosta o rosto desesperado (cinza)
e antes de encarar o poema olha a beira do abismo, brilha
a borda do relâmpago que respira fagulhas.
(relâmpago que o poeta sonega
à alegria da claridade do poema).
OLHOS DO ABISMO
(luz do poço, sala
de (mal) estar da alma
falso aposento de anjo
vereda do abandono)
(A verdade está no poema. Dele provém
o escuro necessário. (Ração de treva para alento dos dias).
Ele é o lavabo do espírito, pia
onde o id se lava todo dia).
A claridade vem do abismo
brota do rosto mais escuro
se afunda no olho
do esgoto vem a luz
líquida, suja, viva.
do poço nascem estrelas
(que Tales colheu com os pés)
Deus é subterrâneo
(abismal Seu olhar
ctônica Sua face – tão sonegada
enterrado o alento
como espelho fluindo)
o céu ilusão côncava
paradoxo de cera
artifício do mal
miragem sem ventre
dom do aborto cósmico
represa o amor
a água do alto
levante esmagado
abôbada de ar o céu
morada da sombra
(disfarçada de branco)
folha sedenta o céu
prata queimada
dádiva vazia
espora do temor o céu
páramo de nuvem vadia
cova da alba
cínico e lento fantasma
longo, curvo, adjetivo
povoando nossas crenças, alicerce
das utopias do espírito
reflexo branco da lama terrena.
PS.
A reiteração da aurora fatiga a alma humana
(que se nutre do escuro incêndio).
A alma ainda é humana?