03
Dom, Ago

Poemas
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NA RETORTA DO TEMPO

 

Na textura do sal a pele da palavra

úmido atravessando a alma

 

 

(a travessia do sentido, a barca

da metáfora endiabrada, o mar

 

 

 

 

verbal revolto, ondas de metonímia

tempestuosas sinédoques assaltando a quilha da palavra).

 

 

O tempo reagindo com o espaço

a química demorada das horas

 

 

o sítio dos objetos sucedendo

retorcendo o cadinho das palavras a vida.

 

1

 

 

(Se espalhando do rosto para o vestígio

invadindo as veias, corroendo íntimos).

 

 

O poema mesurando

quantas esquinas tem o labirinto

 

 

quantas retas têm

rios paralelos

 

 

ante o mar finito

(e os dedos pálidos da aurora

que Homero descriou).

 

DEVER

 

 

Tudo deveria ser vertigem

e silêncio branco

tudo deveria extravasar sem dó

nada conter, desmoronar represas

tudo deveria ser deserto

nada de bosque ímpio ou rumor verde

tudo deveria não ser.

 

 

(Tudo foi anêmona e canção

e o homem não foi humano).

 

LEITORA:

 

 

Às sensações do papel quando

nele se instalam

sublevadas palavras do poema

 

 

Palavras fragmentadas em elo

sob cálices ambíguos ambrosiados: o poema

 

 

Chave sigilosa do mundo não tens

abres porta para fechar-te

só em alguma sílaba de pássaro sentes

estar em bando, cúmplice de alados ditirambos

ou repousando num ramo

de cisnes nadando em signos.

 

 

FIDUCIÁRIAS

 

 

o destino é carnívoro

 

é dos postigos fechados, das cornijas sem ventre

dos tímpanos dopados e do ubre dos abismos

que se ergue o abutre (o poema jamais)

 

 

no desejo do fruto o futuro da semente

guardado a sete impulsos carnívoros

 

 

só os fúteis e os néscios são místicos puros

 

há um aquém de tudo, muitos de nada

 

o além é feito de coisas finas e longas (postiças)

de rédeas de renda e corredores salinos

labirínticas luzes o anelam

nele assolam meandros subterrâneos

 

libidinosos gumes reflexos das foices lunares

fogo anímico da carne atiçam.

 

 

AO ABSOLUTO VÓRTICE

 

 

a Benn, G.

 

 

Breve o pássaro como a flor

a abelha, o fruto, o amor.

 

 

Como se vão o pássaro e flor vai-se

toda a formosura (eterna) do rosto.

 

 

Breve a vida.

ma(i)s breve ainda o amor.

 

 

A glória transitória da rosa

o inútil viço e rápido frescor

que valem?

 

 

Rosas brotam para a morte

(amaro aroma não dura, o carmim

logo desdoura).

 

 

Tudo o que é cínico (e breve) é belo.

 

 

O pútrido também é belo. (A lógica humana é infalível).

 

 

RECIFE DE MINHA COMOÇÃO

 

Recife, cidade sem corpo

só pedra e rio

e plumas de cães sorrindo

lábios de brisa e lâmpada

água de ninguém

vento cangaceiro em congresso

na várzea do Capibaribe

beija a lama e balança a grama

titubeia o arco lírico das pontes

louco pêndulo

único encarcerado no torpor

a lanheza da cidade bifurcada no vestígio

tarde debruçada sobre fragmentos de aurora

rua em que a imagem submersa

dos edifícios se avessa

e peixes habitam os vestíbulos

 

(imagem fisgada da poética

agreste de João Marques)

 

 

a reexistir o Porto e sua sombra estivadora

e a vertigem busque precipício

 

 

onde atirar seus ídolos loucos

onde abeirar-se de seus espantos quando

desatino dormir com marquises.

 

Recife medita e mergulha

no dilúvio do amor sem data.

 

 

A cidade reza duas vezes ao dia

nas tantas igrejas que a magnificam

 

 

beija o adro que fiéis palmilham, sua saliva demora

na avenida Conde da Boa Vista.

 

 

(Em minha veia o Recife urra

viça suas avenidas adúlteras)

 

 

sombras adornam o nome

território da alma marca o corpo

 

Recife marítima e imperturbável

a colecionar fantasmas e levezas

 

 

na Cruz do Patrão

e na mandala do Marco Zero

 

 

(que Brennand colinizou

com menires arrogantes e vitais

 

 

arranha-céus de pedra

pontes verticais para o infinito).

 

 

Recife que mesura o futuro

na palma da mão fluvial.

 

 

(Da ponte Maurício de Nassau vejo

o futuro passando, o passado

 

 

da barcaça dos peixes olhando o presente).

 

 

 

VISÃO E VERTIGEM

 

Velórios aprendem a chorar desde pequenos

a solidão do féretro enriquece a dor

funerárias amam a morte

lápides são caladas por natureza

(se de mármore urram

se de granito berram).

Lapidado silêncio nelas se talha

1. entre o nome infausto e as duas datas.

 

 

2. As profecias temem o futuro

 

 

a hora denuncia as trevas do homem

desenovela suas almas confusas, exibe

3. a carcaça do triunfo, a máscara nua.

 

 

Um relâmpago caiu no rosto

do boxeador nocauteado pela luz

4. pelo sal do punho alçado à lona.

 

 

A noite oculta pássaros

5. e a lua beija flores.

 

 

6. lupanar só no pós-inferno. (da modernidade).

 

 

Ponteiros dos relógios dançam para o tempo

7. (incutem pressa nos dias).

 

 

Na porta do purgatório um guarda

recebe almas pesadas e avisa:

o limbo é do outro lado

conforto aqui é limitado

(no céu, quem sabe? Arrisque!)

aqui não há sauna nem bordel especial

(diversão para almas só no inferno real)

atenção criatura sem ventre: embrulhe

os pecados veniais com os imortais

arrume-os cuidadosamente e anote a quantidade exata

na etiqueta que sobrou dos corpos

coloque-os na panela lauta da áspera sala de espera

da entrada principal do purgatório esquerdo

deixe-os apurar (e parir) para bem purgar

e não sonegue o rosto

8. à verdade que pulsa no fogo.

 

 

9. Purgue pecados à custa dos olhos da cara da alma.

 

 

Quando chove estrela

bem abro os olhos

límpido sinto

o ser da pestana sorrir

e a música da íris

10. me encanta o céu e o sal

 

O horizonte vive de enigmas

filosofa indagando:

de onde sai o mar

por que não me submerge submisso

por que o sol vem da água

11. se a luz é tão alta?

 

 

12. Rouxinol trina para as rosas.

 

O magistrado-mor do Juízo Final

não é cego nem usa mordaça

é árido e severo

quase não perdoa

13. corruptível como os anjos.

 

LÂMPADA DE HOLDERLIN

 

 

(A lâmpada de Holderlin desnuda a lauda

o revólver de Breton rende o poema)

 

 

Lâmpada de argila

lúmen de abelha

 

 

Candeia de brisa

itinerário de água

 

 

Seda de sargaço

bordado de beira-mar

 

 

 

O poema cavalga o ar marítimo

o tropel das espumas é a face de Deus

 

 

ondas parecem escamas brancas

de peixes enovelados no brilho das estrelas

 

 

a leveza do verso busca o lustre da areia

rima lua com preamar de aveia

 

(vá à branca luz do sol que arpeja

peregrino das calçadas de Boa Viagem

 

 

leitora devoradora que linha a linha especula

com a cútis da palavra e se apega sempre

 

 

à intranscedente passagem do verbo presa

fácil da página e do seu sol negro)

 

 

(leitora astuta que aniquila romantismos

e rebarbas condoreiras do campo da palavra poesia)

 

 

Lâmpada de Holderlin incandeia

tudo o que a poesia proclame:

 

 

rumor a paquiderme grassa

no leito deserto do poema

 

 

grito e jângal habitam

a estrofe visionária

 

lua inclinada sobre juncos

o filtro das flores bêbado

 

 

casulos de pedra chorando

gerúndios abandonados

 

 

o fôlego das palavras cobrando

caminhos para extravagar a voragem

 

 

solidão de néon e catraca

harmonia de amar estátua

 

 

cinza movediça e alada

no cotonifício do mar baila

 

 

A SOLILOQUIAR VOU

 

(Confissões do poeta)

 

 

A soliloquiar voo, pássaro sutil

de canto inclinado ao levante

ave de grito debruçado no lenho do poente

em mim mesmo me ensimesmo

(o que não sou é o que (não) sabes

oprimente leitora, dona absoluta e impiedosa

da palavra devoradora e proprietária do sentido)

contrito me deparo com o infinito

e se já não sou o que digo o ego oxido, jugulo

o logo(s), fundo delíquio me golpeia, aterra

me subita o pasmo, o sega me decepa

mas resisto até o último hemistíquio

até o próximo capítulo da rosa resisto

ululo como as libélulas pendulam

sob a vaga lua que o crisântemo aclara

 

 

(minha voz eco cristalino dilacera

se as pausas não demoram no enquanto moro)

leio enquanto o intervalo dura ou o pássaro

do poema ondula ou a algazarra da gangorra atura

alegorio uma mulher vestida de nu (a Clizia de Montale).

 

 

Enquanto silaba o vento no eucalipto cochilo

(o cachecol acalenta a jugular enquanto)

me ensarilho na seda do apuro

na captura da manteiga me amacio

na pausa do hexâmetro durmo

enquanto empedernida a rima o eco me alcandora.

 

 

Enquanto eu soliloquio tu coloquias

a hexametrar linhas me dedico

como a um suplicio.

 

 

APÊNDICE AO POEMA

 

 

Levante: pódio donde a luz do sal

com o arco crepuscular dardos atira no azar

e insípido rosnar de brilho

sobre mácula ou sobre vestígio atira-se.

 

 

Poente: adro onde luzes pastosas como cães

e sentimentos noturnos uivam-me

para olhos humanos enternecerem (ou só cegar)

sítio donde sombras começam peregrinar

cesto onde almas buscam cores para camuflar.

 

 

 

ADENDO

 

A oliveira do bico despenca, fica-me

lábio do vento e canícula, sede do árido.

 

 

Se flagele ao escrever e

não dê bola demais à sintaxe

(ela desperdiça seu gol)

azul obstinado ame: leitora.

 

 

Monologo e coloquio para

que o poema urja ou suja.

 

 

O RIO QUER MORRER

 

Há tardes que sinto do âmago da tinta

do voo oblíquo das sílabas acalento a alma

há tardes em que sento no coração do rio

sinto como sento na oração aquática e crédula

do rio olho água passando (colho líquen perdido)

vejo o futuro que passa correndo

enquanto a tarde beija rumor escuro

(dos últimos pássaros clamor alado)

vindo dos dias de claridade que acabaram

a margem tíbia do sono destruo

(para que insônia não prospere sobre pedras

mas se assoberbe dos olhos dos homens)

 

lodo invade as narinas de outubro

flores enterradas em setembro urram ainda

mugem as engrenagens da alma (escórias sonham)

(catracas amam rolimãs úmidas)

ao molhe das sombras aporto e sinto

o ego que arrasta trevas para si.

O rio quer morrer.

(Se algum dia cruzares a raiva

se o sal da veia uivar

e o mais alto do céu ruir

já podes morrer

imprevisível leitora nada amena

mesmo antes de leres

este estúpido poema.)

 

 

DE FLORES, POUSO, POESIA

 

 

Caracol é especialista em paciência.

Mário Benedetti

 

 

Flores relincham de volúpia quando

borboleta as visita.

 

 

Flores urram no velório quando

mosca as incomoda

 

 

ou quando abelha pouse distraída

no lábio (imóvel) do morto.

 

 

(A poesia é prova

de que os meandros da consciência

são cegos, vagos, estanques, supremos).

 

OUTROS POEMAS DE

VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

COLIGIDOS POR CLÁUDIO VERAS

 

 

 

A PALAVRA MARAVILHA

 

Chegar à noite e torrentes

de ouro noturno

como veio ou uivo correr

gargantas dos filões percorrendo

desembarcar louças nascentes

do cais da aurora ou do útero da treva

e na veia das minas de água rural

pousar bateia, escavar brilho selvagem

beijo chegar às áridas jazidas do lábio

úmida baía onde pousar desejo

porto para desesperanças acesas

desembarcar do cais das desilusões restantes.

 

 

RAIZ DO VERBO E USURA LÍRICA

 

 

Poema

moeda cansada, útero monetário da palavra

esperança que lastro de culpa espalha

pelos lixões e cofres da alma

sina deletéria da verdade (bursátil e esplendorosa)

flor demolida, beleza aviltada da página

voz esquecida, prece escarpada

dos labirintos de basalto do grito sustenida

graça rupestre, silêncio que cobiça o olvido

usura que rumoreja dos precipícios bancários

da palavra às profundezas iníquas do mistério

lucro do escombro lírico, folha de cálcio e cilício

ágio medido, pregão de acrílico, relva enlouquecida.

 

POESIA  APENAS

 

 

Viram-me descer ao vale

(sombra parda arrulhando)

estando a pele do coração

imóvel e calma

(como lobo enevoado)

como laje de tumba.

Lautréamont

 

Quando Maldoror estuprou a jovem grega

em cujo colo dorme a sombra do plátano

começou a poesia dos últimos tempos:

apocalipse do verbo, dilúvio de chamas

data ajuizada, decibéis da besta desabalados

sílabas do sopro sufocadas

para fogo eterno água infinita.

 

 

Após a declaração poética da rosa

cujo viço hipnotizou a narina do cão

Maldoror incita o buldogue do verbo à devoração

(cadela de vocábulos solta na jaula da página).

 

Como qualquer cão que prefira a violação

(rima torpe), o da palavra (cólera branca)

rasga o estame da lauda, néctar púrpuro depreda

abandona o cálice sangrando

todo o jardim despreza (rosa despedaça)

nos lençóis de pétalas deixa

sêmen carnívoro dos dentes caninos.

 

Curioso Maldoror recorre

ao canivete americano de doze ímpias lâminas

debruçado sobre o belo púbis

ira de prata apura

na colméia do mal

revira a jovem vagina

para retirar órgãos

através da espantosa abertura

(portal por onde a humanidade desfila)

e procedimentos tétricos opera

até que o corpo

frango esvaziado pareça.

 

 

(Paródia, documento clínico, lirismo noir?

Indaga Roberto Calasso).

 

Apenas poesia, respondo.

 

ÚLTIMO POEMA

 

(declaração final ou

sopro vencido do barro)

 

“Que homem debruçou-se

sobre o rosto do filho

para refletir

como esse rosto absorverá o seu

quando frio ele jazer?

Rossetti

 

Aos caninos da terra entregarei

meu corpo breve

(e às tenras carnes da alma

imponderável e leve como ave)

o barro já não contém

mais sopro

os ângulos do coágulo esmoreceram

os retângulos do sangue

estão pálidos

 

a mônada já supura

nada impede a morte falha o ato falho

e infalível,ditame irrevogável, atra passagem aborta

(a Deus talvez a Dama Inglesa atenda)

dom de assenhorar-se do poeta

e assim fazer (se) o último poema.

 

 

AO LEITOR

 

Leitor faça alguma coisa, desista

de penetrar o poema, essa verbal vagina

assedie-o, leia pela beirada, salte o obstáculo

ultrapasse a medida, reaja, avive, liberte-se

das grades do desejo quantitativo

do anelo aritmético, vício da trena dos dedos

incinere dores e pássaros, as rosas do pranto devore

faça voar a gaiola sem voo dentro

varra também o tapete (com a pátina do inconsciente)

bem para longe do lixo da alma (a página)

para além dos olhos (ilegíveis), exegéticos extremados

amamente bois mecânicos, abismos ruidosos

galos coesos, mitos e fantasmas enfrente

manipule pêsames brancos, ossos de baunilha

covas de silêncio, vórtice de abelha

para poetas herméticos fabrique

 

lenços para adeuses inconsúteis (ou provisórios)

incite máscaras de lástima e nuvens

para dias de nojo ou enjoos sujos

engendre ultraje ou corteje

sombra de gasômetros

alimente precipícios com rações de escuro

com célica perícia sonde anjos e palavras

extinga cotonifícios (ou os incendeie com candura)

blinde o sentimento, acosse o íntimo

cultive a chama farmacêutica

não deixe nunca cair da mão direita

a candeia esgotada da verdade poética.

 

 

PS.

 

Nunca abandone o poema

em meio a um aparente eito

de sem sentido que beire a página.

Mantenha os olhos por perto do verso

mas distantes da lata de lástima

do vaso de pranto que o poema ultrapassa

evite o ditirambo magoado

e o desespero escrito.

 

QUATRO  POEMAS  AFÍSICOS

 

Sustento e leveza com algemas

de lírio, elos de rosa, hastes de mirro, ângulos

grossas correntezas de luz

à imóvel lâmpada dirijo.

 

Bula de hipocondríaco é bala.

 

A luz do vaso leva ao calibre

do colibri alado candelabro da canção

(do seu cantante coração rubra

salta a manhã).

 

No quarto desejo o corpo dessedento

bilhas de sede lábio entorna

a dor do despojo orna o leito

onde morte não dorme.

 

K E A T S

 

Tua fronte rege o lírio

a umidade da angústia baila

e o orvalho febril

ronda o nu nome

a rosa do rosto cessa

murcha toda a forma

o contorno morre.

 

( tradução VCA)

 

TRIBUTO AO OSTRACISMO

 

Ao monte Testáccio

erguido com os cacos

das ânforas onde se colhiam

tributos de todas as nações

do Oriente e do Ocidente

devidos à soberana Roma.

 

Às colinas brotadas

dos restos das conchas de ostras

que mãos exiladas empunharam.

 

POEMA E OFERTA

 

“ o crepúsculo é um violento

pavão verde

delirando em ouro “. Lugones

 

 

Quantas laudas de espelho

e quilômetros de eco

o rosto gasta (da mulher)

na busca da máscara

do logro, do látego, da jaça

da beleza insensata?

 

A  PROVA

 

Econômica

 

Há vagas

para máquinas.

Não há vagas

para homens.

 

HERÓI

 

 

Herói elabora

cume e queda

ao cair

erige abismo.

 

 

Herói dura

o tempo da queda

persistiria se a hora

não erodisse o pedestal.

 

 

POÉTICA

 

Vinho da palavra

chama-se metáfora.

Sua embriaguez

poesia.

 

SEIOS

 

Seios são rijos

deuses redondos

para culto

alpino do lábio.

 

 

São canções de carne

que mordem a boca

e encantam

a alma da mão.

 

DE LÁSTIMA É A PELE DOS PUSILÂNIMES

 

A uretra dos monges é tranquila

o avanço da úlcera severo

Atônito o futuro dos condomínios de luxo

dúbia a memória do escombro

Azuis as vísceras do enigma

vítrea a ira dos alcoólatras

Tênue sina dos insensatos e a pele

dos pusilânimes de lástima

De lata alma de déspota

de mármor sono de estátua

Berço da escória incêndio

ruína do rosto o tempo

Último sopro apaga o mundo

tem a espessura de um segundo

Fôlego dos moribundos fraudulento

gesto do gato veludo atento.

 

VIDA DOS OLHOS   (HINO DE FUGA)

 

Como lume e sal olhar sega a pele

retalha sol navalha a fio

manhã seivando ainda o arredor

(de pássaros encaracolados no fio do canto

voo esculpido da alma do barro

ária da veia abrindo sonatas do sangue

sino rural peito de campânulas abrindo

pétalas de som voando entre taças de flor)

velho sortilégio da vida impondo à pedra

privilégio do hino, virgem círio

iluminando o hímen, estame acúleo

ótico urdume do meio do amanhecer

imersa bacia onde trêmulo carmim

corrompe a íris do meio-dia

selvagens azuis e azeites ermos

(que o silêncio açula)

a velhas lágrimas do poema aludem

(enquanto o parto das rosas escoa

pelos caules tristes, pelo cerne vivo

– e cardos da comunhão.

 

Dois vícios brotando de altares escuros

seivas e lumes pousando no delírio de antúrios

horda de andorinhas descendo sobre o mundo

eternidades vazias flutuando no espaço púbico

que o infinito delimita dentre sucessivos cios

gôndolas dos relógios moles do mundo

a Dali assediando, salas de um tempo mágico

encenando o futuro – e as dores que virão

verbo espúrio aviltado revoltando

a veia do poema pendulando inteira

entre ressurreição do lodo e escombros nus dilema

(que navega ente o que é e o que não foi)

eco que eco cega, cal que uiva, puro muro

florescendo entre palavras (e dentes de sílabas famintas)

que dormem na boca inconsciente dos homens.

 

AINDA

 

(aos filhos Cláudio Netto e Murillo Gun)

 

Sete poemas para o neto (ainda no útero do futuro)

longe da dor do real, da angústia viva

distante ainda dos percalços e das lacunas

dos emolumentos da culpa incire

da indigna realidade distante ainda.

 

Feto e uivo, urdume e lampejo, oração e usura

hino e tâmara, vinho e gema, claridade nua

tudo do extraviado fóssil do futuro trago

à luz desse labirinto esgotado, eneágono ponteagudo.

 

Bisão rigoroso paste o silo ávido do horizonte

cardume de sombras embriague páramo inocente.

Bosque doloso (irresponsável ante o homem, seu senhor

que conserva com virulência seus pássaros e ramagens).

 

Silêncio virulento apressado rumor rompe

(e cálido grito corrompe).

Da borda da entranha medito, perscruto

a têmpora do poema, o sacrifício.

 

 

 

O poeta desce os úmidos degraus da palavra

(escorregadia, sentida, teatral, adjetiva)

segue a escada onde terminava o anjo

aproxima fontes, toma partido do lume baldio

 

 

 

e das facções das coisas (que o escuro do mundo não perdoa)

à borda respirável ainda recosta o rosto desesperado (cinza)

e antes de encarar o poema olha a beira do abismo, brilha

a borda do relâmpago que respira fagulhas.

 

(relâmpago que o poeta sonega

à alegria da claridade do poema).

 

OLHOS DO ABISMO

 

 

 

(luz do poço, sala

de (mal) estar da alma

falso aposento de anjo

vereda do abandono)

 

(A verdade está no poema. Dele provém

o escuro necessário. (Ração de treva para alento dos dias).

Ele é o lavabo do espírito, pia

onde o id se lava todo dia).

 

 

 

A claridade vem do abismo

brota do rosto mais escuro

se afunda no olho

do esgoto vem a luz

líquida, suja, viva.

 

do poço nascem estrelas

(que Tales colheu com os pés)

Deus é subterrâneo

(abismal Seu olhar

ctônica Sua face – tão sonegada

enterrado o alento

como espelho fluindo)

o céu ilusão côncava

paradoxo de cera

artifício do mal

miragem sem ventre

dom do aborto cósmico

represa o amor

a água do alto

levante esmagado

abôbada de ar o céu

morada da sombra

(disfarçada de branco)

 

 

folha sedenta o céu

prata queimada

dádiva vazia

espora do temor o céu

páramo de nuvem vadia

cova da alba

cínico e lento fantasma

longo, curvo, adjetivo

povoando nossas crenças, alicerce

das utopias do espírito

reflexo branco da lama terrena.

 

 

PS.

 

A reiteração da aurora fatiga a alma humana

(que se nutre do escuro incêndio).

A alma ainda é humana?

Murilo Gun

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