03
Dom, Ago

Poemas
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a César Leal

é preciso que rostos se extingam

e tochas emudeçam

para claridade da fuga

 

que rios cubram rumos

e rastros ceguem sendas é preciso

para claridade da fuga

 

 

 

que se evolem lâmpadas, triunfem cinzas

que empalideçam brilhos é preciso

para claridade da fuga

 

é preciso para claridade da fuga

que deuses fecundem sombras

e gritos se bifurquem nas gargantas

 

para claridade da fuga é preciso

que sóis mirrem, morram luzes

e olhos nasçam novamente

 

PARA CLARIDADE DA FUGA.

 

 

 

 

A FUGA DO ROSTO

 

 

 

Narciso se contempla absorto

no amante que o aquoso

espelho cria da matéria

formosa de seu rosto

 

Ao beijar-se vê o lábio

trêmulo da água ao sopro

do amor mover-se como

de si fugisse a face

 

Ao suspiro de Narciso

se encrespa a água

e a imagem amada

de si mesma se estilhaça

 

Sinfonia e pomar

 

Num pomar em Tibur

um efebo olha o outono.

 

E a brisa manuseia sua túnica cínica.

Em seu olho adolescente late breve crepúsculo.

 

E flautas frígias

agudas como vozes de eunucos

 

são a ele oferecidas

numa bandeja de longos búzios.

 

Coração?

 

 

O que é o coração, além de ser

órgão oco e muscular, habitante

da cave do tórax e bebedor

de sangue – esse vinho tinto e sonâmbulo

que noite afora rege as sinfonias do corpo

e nutre de imagens nossas fantasias imperdoáveis?

 

Que é o coração, além de ser

essa bomba vital, maestro crucial

que sob o ritmo cardíaco

de sua batuta comanda

a espécie e a odisséia humanas?

 

Coração, casa velha, solitário caçador

catre de emoção, pátio incansável

turvo leopardo, andarilho rubro

arroio louco, oásis súbito

desatinado amigo, imperfeito parceiro

terra inútil, músculo vazio

noturna e covarde ficção

cofre, nave, grito, quimera incurável

guerra sem armistício, canção.

 

 

Poemas de linho

ao poeta Paulo Bandeira da Cruz

1

(tecelua)

Árduo urdume cravo

no verde corpo do agave

 

da trama da palavra ergo

ditirambos embriagados

 

no sono da cambraia tramo

sonhos de cetim alado.

 

2

(soltecer)

Ergo monumentos de  bramante

estátua jeans

com o índigo da vida estampado

na alma brim.

 

 

 

O coração é um caçador solitário

 

 

 

Coração errante e andarilho

que bate para quem já foi embora

e estruge nas estradas solitárias

à caça de ninguém ou da inglória.

Sobre um coração de areia (trecho)

Ângelo Monteiro

 

 

“A esse “Coração errante e andarilho”, e somente a ele, deve o homem a sua única plenitude: a poesia que, permeando toda imperfeição, aspira à superação do contingente com sua permanente promessa de utopias. Dessa forma, “Coração de Areia”, em seu léxico de sonhos, reafirma, pelo poder de suas metáforas, a existência do poeta como demiurgo que, através da memória dos poetas mortos, além dos vivos, reassume a sua própria condição de contemporâneo de todas as linguagens. De Neruda a Borges. De Joyce a Eliot. De Nazin Kimet a Drummond.

Vital Corrêa de Araújo, como poeta culto, mas sem negar o espontâneo, mantém em “Coração de Areia” uma unidade poética que demonstra, ao mesmo tempo, a maturidade do homem em relação à linguagem, e a capacidade adolescente de sonhar o mundo”.

 

Ritmos cíclicos em Vital Corrêa de Araújo (trechos)

“Mas em Vital Corrêa de Araújo é preciso estar atento a outros temas fundamentais da teoria do poema. Seu universo poético é polivalente e exige observações que cheguem além dos limites dos ciclos vitais e da própria técnica do verso. Nele é preciso estar atento ao poder criador de imagens. Isso é fundamental, porque sem imagens não pode existir verdadeira poesia. Há muitos sistemas de imagens, eficazes e engenhosos, para a investigação do poema. Onde se encontra a poesia? Com certeza não é confissão romântica como muitos imaginam. As sete imagens acronísticas (imagens que se pode utilizar em qualquer época) fornecem ao analista literário excelente equipamento para a compreensão da poesia de Vital Corrêa de Araújo. A imagem intensificadora, tão usada na Idade Média e que deu tanta força à Commedia, de Dante, é uma dessas figuras que dão energia incomum a este livro de Vital Corrêa de Araújo: Coração de Areia. “Coração de Mulher” é todo ele uma dessas imagens visuais, característica da metáfora intensificadora. Sopra sobre ele uma suave brisa stilnovista que tem sido identificada como um signo de beleza em qualquer época onde faça sua aparição em um poema. São milagres de expressão as imagens em série que aparecem no poema. “ao Coração dos Crédulos”. Fico aqui, não sem lembrar ao leitor que há na poesia de Vital Corrêa de Araújo um componente intelectual que o afasta do versificator e o transforma em legítimo poeta. Esse componente intelectual é invisível e só pode ser observado sob a luz da sensibilidade e do intelecto”.

 

 

FALO

(Diga tudo o que tem a dizer ou/e cale-se para sempre)

 

Vagalumes pousam nas lápides sucessivas, iluminam

anônimos mortos, ausentes e vizinhos

 

Ervas acenam, musgos gargalham quando na cova os verdugos repousam ao lado das vítimas.

 

Pelas encostas, muge

vento vagabundo e peregrinam

luminosas mariposas.

E de brisa montanhosa se alimenta

o faminto deus das colinas.

 

Na ante-noite do primeiro dia

quando eram tênues as formas e pálidos os contornos

quando a luz ainda não existia

Deus foi modelado da argila do infinito

à imagem do Homem que Ele criaria.

 

Destróieres

arruínam horizontes

e aterrorizam albatrozes.

De olhos periscópios acantonados

Na íris marinha da noite, sonham com hecatombes e alumínios.

 

Gaivotas são foices, alfaces, sofismas.

Gritos varam sonos

e atravessam noites imperdoáveis

tributadas de trundras e pesadelos.

 

São de pedras as nascentes

e de anjo temerário as sementes

de sanguinária açucena as pétreas fontes de teu nome.

O temor é de estanho. De tório teu rosto baldio e duro.

Incruentos os poentes e a tarde punhal, adaga atenta

que abre as rubras e curvas artérias do noturno.

 

Cessa o pálido e se inicia

o sacro espetáculo do crepúsculo em teu corpo

cúmplice dos desejos do mundo

que meu olho fútil e minha alma fraca hão de esquecer

distraídos da rosa e do fogo que os devora

alienados da sanguínea arte que os assombra.

 

O cotidiano das avenidas. Ricas e enfermas metrópoles cosmolitas cujas rosas são cadáveres, cujo hálito é a ferrugem ou o desespero.

Metrópoles paralíticas, quasímodas cidades de tentáculos e silos

de loucos asilos metálicos e infrutíferos. Cidades vãs. Enfermos paraísos.

Planícies coalhadas de edifícios. Fartas de apartamentos

onde mora a fera dos elementos.

Santuários de cubos cidadãos e íntegro caos, íncubo, ácido, disciplinado.

 

Ó cidade onírica, onde estás? Por que não és?

Sem gentes alienadas dos câmbios e ágios originais. Cujo espólio é o espaço.

O tempo incólume, cúmplice, farmacêutico. Cuja ara é o logro

cujo lucro é a cárie.

 

Nos odres claros de setembro

Bebo ditirambos, ébrias claridades, vinhos aéreos. Róseos afagos

e fantasmas navegam em meus puros lábios.

E nas veias sangra o sonho.

Utopias singram nos olhos. E de amotinado carbono é o amanhecer.

 

É a noite animal iluminado

golpeado de caves e seivas de neon e de súbitos e fecundos óleos percorrido.

 

Anoitece, Morrem as madrepérolas. Estraçalham-se

os cetins solares. Camafeus noturnos e ruínas atentas se abraçam.

Uivam os véus cadavéricos. Dilacera-se o linho. Desfiat lux.

A noite espalha seus ecos escuros nas ruas pardas, grávidas de gatos.

 

À noite olho o mundo. O tremulo mar da varanda.

Os candelabros líquidos. E náuticos duendes que rondam

os capitéis dos palácios marinhos.

 

Olho o ser e as estrelas e sinto

que o fim das coisas é noturno e a claridade cegará

a si mesma e ao mundo.

 

 

O fulgor é cego. E cegas as iluminações.

E baços os espelhos desse frágil final de século, com seu registro sincero de destruições.

 

Vade retro, sereias métricas! Livrai-nos, Senhor das tentações da forma! Das traições simétricas.

 

Satã, assustai as rimas, esses ruídos sonoros!

Afastai de mim, Senhor, as taças do ritmo estreito, cheias

de raros sons e imagens pantanosas ou principescas.

 

Tomba o nauta fecundo na líquida solidão da face.

Só o poema abate a solidão animal que esplende em ti

e te faz serva de cristais sem pressa.

A solidão milimétrica crava-se em nós, como caráter, embrião ou coleira.

 

A mácula habita o lençol

gerada em noite antiga sem virtude ou amparo.

 

Ó ásper e céler nau, dizei-me

quem navega teu rosto? Quem te faz pulsar as vísceras exaustas

e o coração tombar no convés vazio?

 

Que desatina sede campeia na alma sem peia

aporta em corpo insone

devastado de ilusões sem nome?

 

Bidês cônicos, louças cênicas, cerâmicas crassas

salas hirsutas, lavabos agônicos, copas sinfônicas

e epigramas cadavéricos ornamentam

as gestas industrias

e nutrem a febre destrutiva dos construtores metropolitanos.

 

Iluminam-se de alumínios as avenidas

varridas de infindos edifícios, torres flácidas, fecundos mitos

torres geminadas, febre de escombro

gare de usura, sinistra contabilidade bélica

que a estética de cimento amado edificou

no férreo e enfermo coração das metrópoles tentaculares

que deuses movidos a óleo diesel azeitam

com ungüentos cardíacos e bálsamos automáticos.

 

A septicemia assume o ápice. O auge muge.

Foge o agônico zênite para a queda sob o ímpeto do apogeu vazio.

Pálido triunfo sobre o rosto do rubro se assiste.

 

O ocaso galga cumes.

Sêmen espalha-se pelas planícies fecundas do equânime corpo. Abre ventres.

Doma cumes. Arrosta úteros. Invade óvulos.

E no incêndio de seu dilúvio lavra-se o Homem Novo.

 

Ulceram-se os céus

habitados por tempestuosos deuses.

E suas lágrimas derramam-se como semáforos ou centopéias.

Suas iras são corredeiras. São relâmpagos seus gritos rápidos.

 

A Alba rasgou os tênues véus da noite.

Quebrou o escuro hímem. Acordou topázios.

 

 

Eis que os adjetivos aplaudem

o parto dos sintagmas, o fecundo conúbio das imagens, as bodas

da palavra com a palavra.

 

E do cofre da treva foge o rubi da manhã

gótico, súbito, escandinavo.

 

Dos vinhos matinais brotam

pássaros persas. Penélopes voadoras. Nuvens e palafitas amam-se.

Orientais candeias atestam a silhueta dos cílios

das ardentes odaliscas.

 

Uma lua mulçulmana bebe

no oásis de teus olhos loucos. Em tua carne o sol se refestela.

E um pote árabe de aurora é aos amantes silenciosos oferecido.

Como penhor de seus exatases noturnos.

 

 

 

 

PERGUNTAS PELO VINHO

És da inquieta estirpe do cristal?

Descendes de que safira nua?

Fugas árduas encantam-te

A fragrante cor musical?

 

Quem te doma o puma do aroma?

Tigres do relâmpago acalmas

e lentas seivas tocaias

de estrelas estraçalhado taças?

 

Cálices e almas lampeja

quem os avaros jades recolhe?

Quem de hoelhos põe diademas

os sonâmbulos fluxos desata?

 

Se inóspitos rubis escapam

do reflexo genial da garrafa

quem os acolhe com mãos de ônix

e com tiaras atravessa praças?

 

 

Ao cálice de vinho

cântaro do espírito

ânfora, grito, lume infinito

 

 

à aduela

que dá forma aos barris

à dorna

que uvas transporta

ao lagar sagrado

 

 

No sono da parreira uva sonha

no sumo da uva vinho vive

 

 

 

Ao nus óleos dos sábados

às noturnas engrenagens que fabricam domingos

à extinção do sal

ao simulacro branco

 

 

 

POEMA AO LEITOR

Leitor, faça alguma coisa, tome um conhaque em riste

desista de conhecer o poema, beba-o, morda-o

com dentes parmenedinianos úmidos

liberte as grades do desejo

incinere dores e pássaros

faça voar a gaiola sem voo dentro

varra também o tapete (com o poema

a água do banho da gramática jogue)

para bem longe do lixo, amamente

bois mecânicos, abismos, galos coesos, mitos

manipule pêsames brancos, ossos de baunilha

liças de abelhas desafil, enfrente pusilânimes

fabrique lenços para adeuses provisórios

com lágrimas incluídas

incite máscaras de lástima e nuvens

para dias de nojo ou enjôos sujos

corteje a sombra dos gasômetros

extinga cotonifícios, alimente precipícios

erga a chama farmacêutica, o óbdo sublingual

blinde esperanças e mansões, mas

não deixe nunca cair da mão esquerda

a bandeira esfarrapada do poema

(e nunca o abandone

em meio a um aparente sem sentido

que beire a página do seu lábio.

 

Busco arquétipos de teu olhar no céu azul

e nas revoltas águas do mar teu rosto perdido

(cavalo que alimentou o páramo

canção que contamina harpas)

e na íris incansável do abismo

e nas gemas enterradas nos milênios

nas artes ópticas dos felinos

embuçados nas noites do sertão

nas velhas canções dos marinheiros

e nos versos de mortais cantorias

busco teu nome, reflexo do que és, vida.

 

Lavra o céu de relâmpago duro fragor

arde trêmulo infinito em luz e rumor

brilha a escória, gemas consomem

o carbono das estrelas

esgrima o infinito com a eternidade

na liça da realidade

sob pálio de uma tarde terrestre.

 

 

 

TERCEIRA VISÃO

 

No caos aporta

Naves de sombra

Tremulas auroras.

 

 

II

 

Laços vazios, baços abismos

de água e musgo habitam

a alma baldia.

 

DUETO

Brilha palpitante entranha

do trêmulo mármore

vísceras da sombra esplendem

 

Rumor de aurora escande

a alegria da água noturna

o esplendoroso abismo de ouro e grito

 

no intestino das estrofes

refulge as pratas da náusea

rugem as convulsões do vômito.

 

 

TERMOR DE MÁRMORE

Deixo-te, querida, o quanto tenho vivido

dias que virão, dias já mordidos.

 

 

Nem sempre a sombra vem de alguma dor

nem a tristeza de criptas ou lápides escuras.

 

 

Ninho de galáxias, que pássaro

cósmico o prepara?

 

 

LEGADO  3  X  2

No inferno correm rios sólidos

pelo sangue dos culpados enraivecidos

pela ira das catracas subjugados

cavalos eclesiásticos lá pululam

cujos freios são a mitra da loucura

e os arreios cajados acadêmicos.

 

Tramitam piras, crateras regorgitam

ardem canoros escombros, orgasmos ungem

triunfos podres comlegendas inglórias.

 

No inferno céu é dura

ilusão de súcubo

dávida do esquecimento

incunábulo

pútrida banalidade.

 

Às platéias condoreiras ofereço

flébeis vislumbres, torsos de virgens

músculos de avestruzes e febres

idílios de albatrozes e potes de vinagre

além de caixas de Viagras.

 

 

A todas as vozes úmidas

A todas as volúpias vândalas

 

 

a todos os verbos lúbricos

a todos os lumes cegos.

 

 

Às pálpebras do sal, obra branca

aos sábados tímidos e longes.

 

Aos ditirambos de outubro

às álgebras lascivas do seio.

 

MICHAUX  MORTO

  1. A solidão inspira ratos.

 

Sou calcante e adivinho

  1. Filho de Anfiaram, irmão de Anfíloco.

 

Fossem queimar-se toneladas de livros

volumosa e falsa poesia

que se publicam anualmente no Brasil

  1. e o fogo eterno seria insuficiente.

 

  1. Das cinzas dos impérios erguem-se raposas.

 

Sobre a cova anônima dos heróis

  1. Tranqüilas baratas transitavam.

 

As joialheiras de Paris ficaram nostálgicas

silêncio assomou às sacadas

estendeu-se às calçadas ate à extinção.

Gares fumegaram.

O Sena vomitou borbotões (e cargueiros

que transportavam cinzas de heróis antigos).

A náusea apossou-se dos sulevares

Adormeceram nos molhos talismã.

Manhãs não mais se prometiam

O sol se recusou a sair.

 

  1. quando Michaux morreu.

 

 

 

4  POEMAS

Todo maníaco é lírico

todo solitário eleita.

 

É de ao todo cansaço.

 

Máscaras antiqüíssimas de prata erodem-me

conservam meu rosto solar e mudo ereto

orgias erguem-se, ocupam-me o espírito (confissão).

 

Palavras foram feitas para ocultarem

e não para revelarem nuas o pouco das coisas.

 

7  POEMAS

Os que portam tirsos são muitos

  1. poucos os possuídos por Dionísios.

 

  1. Todos devemos galos a Asclépico.

 

  1. Vide bula vide bulimia.

 

Bursáteis lipídios nas veias dos cadáveres

Fazem subir a cotação dos cemitérios

  1. (e aumenta a locação de velórios irresistíveis).

 

Banido do Olimpo Apolo

no exílio hiperbórico

vá lágrima de âmbar vertia

  1. Nostálgico do éden grego.

 

  1. Tem o nome de ambrosia.

 

Nas águas curvas da vida

Lariço dúvidas e redes

  1. Fisso peixes e certezas.

 

MAIS 7 POEMAS

  1. Sândalo para a pira de Savonarola em Ferrara.

 

Clama o papa por mais desgraças

  1. A corte angélica faz ouvidos de pescador mouco.

 

A alvorada está morta. Tons pastéis disputam

  1. o enterro da aurora.

 

Aurigas estrangularam estátuas de dois cavalos

  1. No estábulo onde nefestos soldava uma quadriga.

 

Féretro noturno. Treme o amanhecer.

Beija-flores amordaçados vêem rouxinóis morrerem

  1. Estrangulados por monges Donachões, hortelãos orgânicos.

 

  1. Alcatéia de silêncio estraçalham células de grito.

 

  1. Monges abraçados a cilícios amontoam-se na lua.

 

 

 

Ao sentido das cores iconoclastas

e às essencial obscuridade das palavras

(que por reflexo ou instinto de sobrevivência negam

o último sentido aos poetas, e detestam

os que exploram suas fragilidades dicionárias)

 

 

Aos cães de Florença

aos manicômios da Baviera

aos cafés parisienses da margem esquerda

 

 

Às graças nômades

aos beijos beduínos

às almas desertas

 

 

Aos cânones das ruas

ao sarcasta

à catarse, ao escárnio.

 

 

 

À ESSÊNCIA NUA DO TROVAR ESCURO

O poema acontece. A imagem brota do nada ao encontro da palavra em jorro breve, largo, lépidos flashes crassos ou puros, mas descontínuos e lassos, adjetivos.

O poema não nasce classicamente, não é a recolha de uma messe de letras, algo que vindo em semente se assemelhe a um fervor agrícola, a um molho de semestres cereal do verbo que plantado e mirja (pão undécimo) sob égide de uma estrutura, vôo  de baunilha sob pálio de uma história, esquema hábil em aritmética e música, partida dobrada de emoção diurna como soi ser “poemas despoietizados”.

Acontece, súbito relâmpago, voragem

que escurece o jugo das palavras

presa do dínamo narrativo, catraca do sentido

o poema acontece sob trilhos próprios do tempo

descarrilha antes de sujeitar-se à estação da gramática

nas rédeas insolentes do inútil e da intriga perde abrigo, ganha refúgio, no tugúrio do sintagem desconexo habita, nas minúcias de um espaço passivo inacabado sempre, demoníaco, talvez imóvel (semovente) como um sino antes do primeiro repique.

O poema surge e ressurge e incorpora-se à passagem do tempo como a lava de um vulcão à geografia do olho encarna-se na passagem do fruto como a boca no mundo. emerge dado, acontecido, fato de palavras construído por parcas porfiosas tecido, por gestos irremediáveis alinhavado, Penélope e Penélope, o tecido do inverso vertido fruto da epifania do verbo do projeto da página concebido.

Vêm os poemas do repúdio da suspensão do temos da carne do incomunicável (do comunicável não é preciso) fluem do imanente, mas desprezam talvez o contudo e toda a transcendência do palavroso abominam.

Do frutífero inconsciente, do prolífero critério de imagens suínas (e grupais inclusive) é fruto também.

Adota o infecundo e a intempérie como símbolos e as carnes da prosa para sua fome metafórica.

O poema erguese de um reservatório de escombros de uma legião de dores, de um cesto de torsos arcaicos de uma usina de sombras fecundas e dínamos solares para a claridade da palavra, para o foco da essência, íntima, vasta.

Advém o poema de uma zona cega (ponto morto) perigosamente impura, entranhadamente nua.

Vem a poesia ao poema em fragmentos de mundo (que o obus da palavra deteriora e salva), em forma de olhar de temores, de dias sonâmbulos, de vazios intensos.

A poesia depende do silêncio açulo do poeta que fazer-se em poema arrastar-se até a página, leito ou útero de sua rebentação angélica.

O poema vive às expensas de porfios Ariadne fricativa, fina frágil, sílaba de fonte e mistério, guia e amoroso caminho, indefesa luz, abandonada gema.

Se o poema não tem a aparência do que vem feito sua essência é falsa ou fabricada por máquina de prosa.

O poema é dinamizado por musas atadas (deuses estanques) ao subconsciente do mundo, à inconsciência da coisa que o ilumina, rebusca, rubrica, denuncia ou afoga.

Todo poema é sonâmbulo sob pena de ser narração do nada, doença do sono, dor da vírgilia, artifício da alma.

(Se o poema não passa da página em branco, publique o mundo cerne por ratos urbanos, suicide-se com o alfange da palavra).

Mas nunca diga que o poeta é um fazedor de signos cegos artesão de metáforas encaixotadas em urnas sonoras em diapositivos de música ou um reles fingidor do mundo de que se demite.

 

OBRA POÉTICA DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

ÉDITOS

Título Provisório – Natal-RN

Poemas com Endereço – Recife-PE

Burocracial – Edições Pirata – Recife-PE

Gesta Pernambucana – Recife-PE

Coração de Areia – Fundarpe-PE

50 Poemas escolhidos pelo autor (em homenagem a Simeão Leal)

Editora Galo Branco Waldir do Val – RJ

Só às Paredes Confesso – Edições Bagaço – PE (1ª e 2ª edições)

Palpo a Quimera e o Tremor – Edições Bagaço-PE

(A Cimitarra e o Lume – Recife-PE (fora do comércio)

Bando de Mônadas – Edições Bagaço

 

INÉDITOS

Cem Ditames de Amendoa (on-verse-poemas)

Simulacro seguido de Escuras

Frases da Lua

Atanor

Grifo meu

Gide ou o Desejo

Livro Jogado Debaixo do Tapete

Haicais Heterodoxos (Flauta de Pássaro)

Relógios Moles

 

ENSAIOS

Jorge Luís Borges – Leitura Escrita e Traduções

Visão Pontual de Poetas Pernambucanos (2003/2009)

 

DOM

 

A noite é um dom (feérico ou escuro)

janela para ler estrelas, olhar a alma

ou apenas mais uma teia

que o viço da treva enleia?

FATOS NUS

 

 

Rosas provocam lascivas abelhas

(a orgia do néctar dilacera quelicéras de aranha)

cavalos atropelam magnólias

na hara do jardim.

 

Enquanto crisântemos se desesperam

generais de jaspe preparam

estratagemas de nojo.

 

Minerais batalhas de náusea

rumor noturno desata.

 

CONSTATAÇÃO INELUTÁVEL

 

 

Lua dilacera entranhas

Sino rói campanários

A hora alicerces.

SEIS POEMAS IN EXTREMIS

 

 

Sua boca títere trâmite de formigas

seu coração burocrático monocórdico.

 

Vis lascívias vias

no ventre da reentrância.

 

Vago olho do horizonte.

 

Abutre intacto o coração.

 

A cor da extrema-unção é rosa pálido.

 

Nada mais exato do que a fantasia.

DESMAIO AZUL

 

No trêmulo crepúsculo

na tina de cores mortuárias

azul desmaio.

 

 

A POESIA

 

 

vê o indizável.

 

A poesia precisa ver o invisível

para dizer o indizível.

 

 

GRAFFIT DE TURIM

 

Deus está morto (Nietzsche)

Nietzsche está morto (Deus).

 

 

POESIA

 

 

 

Que é a poesia senão o poder da palavra

a forma absoluta dessa soberania na página?

E não regras anacrônicas e antignadas marcas

Sólidos selos de impotência

de nossas trêmulas certezas!

Derrames na lauda branca

de inspirações mecânicas.

Artifícios sem sonho delírios domados.

Verdade da alma no filtro da tinta estampada.

SEIS DÍSTICOS DE MAIO E UM TERCETO

 

Vão-se os dedos que são carne

ficam-se os anéis de brilhantes.

 

As mãos da primavera

amuralham de pássaros

castelos de açucena.

 

Um gazel de Hafiz vale muito mais

do que mil antologia de amor.

 

Que o longínquo eco da canção seja

bálsamo, sumo da vida, ébria bebida.

 

A glória é de mortal porcelana

o trono de imitação de barro.

 

Nos pátios côncavos em horas tortas

à sombra de hospícios curvos

 

Lua espreita rua

uiva a lobos urbanos.

 

 

 

CIÊNCIA

Sei que águas levarão meu rosto

às sarjetas urgentes do sonho

e sei que os detritos do tempo

embelezarão o abandono.

 

CAPUZ DE DÚVIDA

Aos touros metafísicos

à lua, aos mares, às mulheres

à morte vasta e destra

 

 

ao epicurista que escreveu Eclesiastes

aos anjos industriosos do paraíso.

 

 

Mar da manhã harpa estendida ao sol.

 

A lua cai do equinócio no capricórnio.

 

Dança Gaia no céu esponjoso

balé espiralado e leitoso das estrelas.

 

Via Láctea leite fluindo do seio da deusa.

 

Todas as verdades têm seus véus.

 

SE

 

 

Se choras pelo sol posto lágrimas

não te impeçam de ver estrelas.

 

 

GOSTO E APETITE

(da canina educação)

Poemas escritos em biscoitos

ávidos cães vadios devoraram

numa demonstração de bom gosto.

 

RETORNO ETERNO

Nada se perde, tudo se come

nada se fixa, tudo se move

Suínos cevam-se dos cadáveres dos homens

que se deliciam com linguiça

de intestino de porco.

 

 

ESSE ÁRDUO GRITO DE CARNE

(poema ao olhar a lua do seio)

esse árduo

prisma noturno

teu olhar longo

declara

esse vale de prodigiosa carne

entre montanhas macias

minha boca ereta

(as mãos deslumbradas)

denuncia.

A NOITE CÉU

Quando a noite se estender contra o céu

como paciente anestesiado sobre a mesa

estarei carpindo Terra Devastada.

 

Restaram do ósseo holocausto da alma

do banquete dos símbolos restaram

alguns úmeros tíbios

dois cúbitos ínvios

túnicas efêmeras

fêmures arruinados.

 

A essência da poesia chega

às hélices vivas reluzentes

nela incrustadas

chaves do passado

cápsulas do futuro.

 

DIVA TAREFA

Tarefa dos servos e cravos

romper ligamentos dos punhos vassalos.

 

Jesus multiplicará multidões

para alimentar peixes.

 

Multidões com uma só cabeça

para só um fecundo golpe de adaga.

 

O tempo também corre contra os reis.

e não veias dos místicos embarca.

RELÓGIOS MOLES

Catracas se roeram

relógios morreram ontem

liquifizeram-se

(morte por água e por decurso)

moles derramaram-se

(mar de sinos mortos, fundição do tempo)

pelo ombro dos homens

alastrando-se

sobre olhos atemporais

metalúrgicos galos

intimoratos búzios

se calaram.

DESEJO

Dos lábios ardentes do Profeta saltem

salmos como peixes da água.

 

 

 

ÂNGELO

Sobre os ombros hercúleos (orco)

do Atlas florentino ergue-se

a cúpula de São Pedro, pedra

e o grito que da nave voa

espírito do homem abriga

na carne da hora ecoa.

 

PEQUENA E LÚBRICA HISTÓRIA TAURINA

De novilha do templo

da campina se finge

taurina unção recebe

sêmen divo e potente

entre êxtases extremos

gera o mito e o ser

o fruto minotauro

um homem metade touro

um touro metade homem.

 

Jovens, fluidos, quase metafísicos

leves como zéfiros

alados acrobatas de Cnossos

dançam sobre touros

atados a seus córneos

nos domingos cretenses

à tardinha.

 

Os chifres do touro

semelhantes a luas crescentes

os pátios do Labirinto clareiam.

 

7 POEMAS DE ÊXTASE

1

 

de que se nutre

esse incêndio

que não debelo

e se alastra louco

pela noite do corpo?

 

2

vinho extinto o amor

taça vazia

a um brinde

de solidão se oferecia.

 

3

seios: rijos

deuses redondos

para o culto

alpino das mãos, pouso

da ave dos lábios

seres binários

de pele ágil

para a sede tátil

dos dedos

para a fome

decimal dos desejos.

4

seios: sinuosos

mistérios róseos

canções de carne

que mordem a boca

e encantam

a alma da mão.

5

morderei em fúria

fruto púbis

até que cesse toda sede

que viver dos lábios.

 

6

casta chama do seio

incendiará a mão.

 

7

o fluir

de todas as fontes

do amor

nascidas do teu corpo

que freme infinitamente

flagrei.

 

BREVE DIA ETERNA NOITE

Vão-se as rosas dos anos

ficam os dedos noturnos

e o rastro dos desenganos.

 

Desfolham-se as faces

o rosto não é mais máscara

que o viço relevava.

 

É força que não guardes

frutos além da puberdade

e nunca os sentidos mascares.

 

(Acicate o desejo, torne-o mais vivo

pula-o com a lupa da carne

faça-o iluminar o espírito).

 

É força que não deixes

a estrela do olhar morrer.

Nem um dia dura o esplendor!

Murilo Gun

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