a César Leal
é preciso que rostos se extingam
e tochas emudeçam
para claridade da fuga
que rios cubram rumos
e rastros ceguem sendas é preciso
para claridade da fuga
que se evolem lâmpadas, triunfem cinzas
que empalideçam brilhos é preciso
para claridade da fuga
é preciso para claridade da fuga
que deuses fecundem sombras
e gritos se bifurquem nas gargantas
para claridade da fuga é preciso
que sóis mirrem, morram luzes
e olhos nasçam novamente
PARA CLARIDADE DA FUGA.
A FUGA DO ROSTO
Narciso se contempla absorto
no amante que o aquoso
espelho cria da matéria
formosa de seu rosto
Ao beijar-se vê o lábio
trêmulo da água ao sopro
do amor mover-se como
de si fugisse a face
Ao suspiro de Narciso
se encrespa a água
e a imagem amada
de si mesma se estilhaça
Sinfonia e pomar
Num pomar em Tibur
um efebo olha o outono.
E a brisa manuseia sua túnica cínica.
Em seu olho adolescente late breve crepúsculo.
E flautas frígias
agudas como vozes de eunucos
são a ele oferecidas
numa bandeja de longos búzios.
Coração?
O que é o coração, além de ser
órgão oco e muscular, habitante
da cave do tórax e bebedor
de sangue – esse vinho tinto e sonâmbulo
que noite afora rege as sinfonias do corpo
e nutre de imagens nossas fantasias imperdoáveis?
Que é o coração, além de ser
essa bomba vital, maestro crucial
que sob o ritmo cardíaco
de sua batuta comanda
a espécie e a odisséia humanas?
Coração, casa velha, solitário caçador
catre de emoção, pátio incansável
turvo leopardo, andarilho rubro
arroio louco, oásis súbito
desatinado amigo, imperfeito parceiro
terra inútil, músculo vazio
noturna e covarde ficção
cofre, nave, grito, quimera incurável
guerra sem armistício, canção.
Poemas de linho
ao poeta Paulo Bandeira da Cruz
1
(tecelua)
Árduo urdume cravo
no verde corpo do agave
da trama da palavra ergo
ditirambos embriagados
no sono da cambraia tramo
sonhos de cetim alado.
2
(soltecer)
Ergo monumentos de bramante
estátua jeans
com o índigo da vida estampado
na alma brim.
O coração é um caçador solitário
Coração errante e andarilho
que bate para quem já foi embora
e estruge nas estradas solitárias
à caça de ninguém ou da inglória.
Sobre um coração de areia (trecho)
Ângelo Monteiro
“A esse “Coração errante e andarilho”, e somente a ele, deve o homem a sua única plenitude: a poesia que, permeando toda imperfeição, aspira à superação do contingente com sua permanente promessa de utopias. Dessa forma, “Coração de Areia”, em seu léxico de sonhos, reafirma, pelo poder de suas metáforas, a existência do poeta como demiurgo que, através da memória dos poetas mortos, além dos vivos, reassume a sua própria condição de contemporâneo de todas as linguagens. De Neruda a Borges. De Joyce a Eliot. De Nazin Kimet a Drummond.
Vital Corrêa de Araújo, como poeta culto, mas sem negar o espontâneo, mantém em “Coração de Areia” uma unidade poética que demonstra, ao mesmo tempo, a maturidade do homem em relação à linguagem, e a capacidade adolescente de sonhar o mundo”.
Ritmos cíclicos em Vital Corrêa de Araújo (trechos)
“Mas em Vital Corrêa de Araújo é preciso estar atento a outros temas fundamentais da teoria do poema. Seu universo poético é polivalente e exige observações que cheguem além dos limites dos ciclos vitais e da própria técnica do verso. Nele é preciso estar atento ao poder criador de imagens. Isso é fundamental, porque sem imagens não pode existir verdadeira poesia. Há muitos sistemas de imagens, eficazes e engenhosos, para a investigação do poema. Onde se encontra a poesia? Com certeza não é confissão romântica como muitos imaginam. As sete imagens acronísticas (imagens que se pode utilizar em qualquer época) fornecem ao analista literário excelente equipamento para a compreensão da poesia de Vital Corrêa de Araújo. A imagem intensificadora, tão usada na Idade Média e que deu tanta força à Commedia, de Dante, é uma dessas figuras que dão energia incomum a este livro de Vital Corrêa de Araújo: Coração de Areia. “Coração de Mulher” é todo ele uma dessas imagens visuais, característica da metáfora intensificadora. Sopra sobre ele uma suave brisa stilnovista que tem sido identificada como um signo de beleza em qualquer época onde faça sua aparição em um poema. São milagres de expressão as imagens em série que aparecem no poema. “ao Coração dos Crédulos”. Fico aqui, não sem lembrar ao leitor que há na poesia de Vital Corrêa de Araújo um componente intelectual que o afasta do versificator e o transforma em legítimo poeta. Esse componente intelectual é invisível e só pode ser observado sob a luz da sensibilidade e do intelecto”.
FALO
(Diga tudo o que tem a dizer ou/e cale-se para sempre)
Vagalumes pousam nas lápides sucessivas, iluminam
anônimos mortos, ausentes e vizinhos
Ervas acenam, musgos gargalham quando na cova os verdugos repousam ao lado das vítimas.
Pelas encostas, muge
vento vagabundo e peregrinam
luminosas mariposas.
E de brisa montanhosa se alimenta
o faminto deus das colinas.
Na ante-noite do primeiro dia
quando eram tênues as formas e pálidos os contornos
quando a luz ainda não existia
Deus foi modelado da argila do infinito
à imagem do Homem que Ele criaria.
Destróieres
arruínam horizontes
e aterrorizam albatrozes.
De olhos periscópios acantonados
Na íris marinha da noite, sonham com hecatombes e alumínios.
Gaivotas são foices, alfaces, sofismas.
Gritos varam sonos
e atravessam noites imperdoáveis
tributadas de trundras e pesadelos.
São de pedras as nascentes
e de anjo temerário as sementes
de sanguinária açucena as pétreas fontes de teu nome.
O temor é de estanho. De tório teu rosto baldio e duro.
Incruentos os poentes e a tarde punhal, adaga atenta
que abre as rubras e curvas artérias do noturno.
Cessa o pálido e se inicia
o sacro espetáculo do crepúsculo em teu corpo
cúmplice dos desejos do mundo
que meu olho fútil e minha alma fraca hão de esquecer
distraídos da rosa e do fogo que os devora
alienados da sanguínea arte que os assombra.
O cotidiano das avenidas. Ricas e enfermas metrópoles cosmolitas cujas rosas são cadáveres, cujo hálito é a ferrugem ou o desespero.
Metrópoles paralíticas, quasímodas cidades de tentáculos e silos
de loucos asilos metálicos e infrutíferos. Cidades vãs. Enfermos paraísos.
Planícies coalhadas de edifícios. Fartas de apartamentos
onde mora a fera dos elementos.
Santuários de cubos cidadãos e íntegro caos, íncubo, ácido, disciplinado.
Ó cidade onírica, onde estás? Por que não és?
Sem gentes alienadas dos câmbios e ágios originais. Cujo espólio é o espaço.
O tempo incólume, cúmplice, farmacêutico. Cuja ara é o logro
cujo lucro é a cárie.
Nos odres claros de setembro
Bebo ditirambos, ébrias claridades, vinhos aéreos. Róseos afagos
e fantasmas navegam em meus puros lábios.
E nas veias sangra o sonho.
Utopias singram nos olhos. E de amotinado carbono é o amanhecer.
É a noite animal iluminado
golpeado de caves e seivas de neon e de súbitos e fecundos óleos percorrido.
Anoitece, Morrem as madrepérolas. Estraçalham-se
os cetins solares. Camafeus noturnos e ruínas atentas se abraçam.
Uivam os véus cadavéricos. Dilacera-se o linho. Desfiat lux.
A noite espalha seus ecos escuros nas ruas pardas, grávidas de gatos.
À noite olho o mundo. O tremulo mar da varanda.
Os candelabros líquidos. E náuticos duendes que rondam
os capitéis dos palácios marinhos.
Olho o ser e as estrelas e sinto
que o fim das coisas é noturno e a claridade cegará
a si mesma e ao mundo.
O fulgor é cego. E cegas as iluminações.
E baços os espelhos desse frágil final de século, com seu registro sincero de destruições.
Vade retro, sereias métricas! Livrai-nos, Senhor das tentações da forma! Das traições simétricas.
Satã, assustai as rimas, esses ruídos sonoros!
Afastai de mim, Senhor, as taças do ritmo estreito, cheias
de raros sons e imagens pantanosas ou principescas.
Tomba o nauta fecundo na líquida solidão da face.
Só o poema abate a solidão animal que esplende em ti
e te faz serva de cristais sem pressa.
A solidão milimétrica crava-se em nós, como caráter, embrião ou coleira.
A mácula habita o lençol
gerada em noite antiga sem virtude ou amparo.
Ó ásper e céler nau, dizei-me
quem navega teu rosto? Quem te faz pulsar as vísceras exaustas
e o coração tombar no convés vazio?
Que desatina sede campeia na alma sem peia
aporta em corpo insone
devastado de ilusões sem nome?
Bidês cônicos, louças cênicas, cerâmicas crassas
salas hirsutas, lavabos agônicos, copas sinfônicas
e epigramas cadavéricos ornamentam
as gestas industrias
e nutrem a febre destrutiva dos construtores metropolitanos.
Iluminam-se de alumínios as avenidas
varridas de infindos edifícios, torres flácidas, fecundos mitos
torres geminadas, febre de escombro
gare de usura, sinistra contabilidade bélica
que a estética de cimento amado edificou
no férreo e enfermo coração das metrópoles tentaculares
que deuses movidos a óleo diesel azeitam
com ungüentos cardíacos e bálsamos automáticos.
A septicemia assume o ápice. O auge muge.
Foge o agônico zênite para a queda sob o ímpeto do apogeu vazio.
Pálido triunfo sobre o rosto do rubro se assiste.
O ocaso galga cumes.
Sêmen espalha-se pelas planícies fecundas do equânime corpo. Abre ventres.
Doma cumes. Arrosta úteros. Invade óvulos.
E no incêndio de seu dilúvio lavra-se o Homem Novo.
Ulceram-se os céus
habitados por tempestuosos deuses.
E suas lágrimas derramam-se como semáforos ou centopéias.
Suas iras são corredeiras. São relâmpagos seus gritos rápidos.
A Alba rasgou os tênues véus da noite.
Quebrou o escuro hímem. Acordou topázios.
Eis que os adjetivos aplaudem
o parto dos sintagmas, o fecundo conúbio das imagens, as bodas
da palavra com a palavra.
E do cofre da treva foge o rubi da manhã
gótico, súbito, escandinavo.
Dos vinhos matinais brotam
pássaros persas. Penélopes voadoras. Nuvens e palafitas amam-se.
Orientais candeias atestam a silhueta dos cílios
das ardentes odaliscas.
Uma lua mulçulmana bebe
no oásis de teus olhos loucos. Em tua carne o sol se refestela.
E um pote árabe de aurora é aos amantes silenciosos oferecido.
Como penhor de seus exatases noturnos.
PERGUNTAS PELO VINHO
És da inquieta estirpe do cristal?
Descendes de que safira nua?
Fugas árduas encantam-te
A fragrante cor musical?
Quem te doma o puma do aroma?
Tigres do relâmpago acalmas
e lentas seivas tocaias
de estrelas estraçalhado taças?
Cálices e almas lampeja
quem os avaros jades recolhe?
Quem de hoelhos põe diademas
os sonâmbulos fluxos desata?
Se inóspitos rubis escapam
do reflexo genial da garrafa
quem os acolhe com mãos de ônix
e com tiaras atravessa praças?
Ao cálice de vinho
cântaro do espírito
ânfora, grito, lume infinito
à aduela
que dá forma aos barris
à dorna
que uvas transporta
ao lagar sagrado
No sono da parreira uva sonha
no sumo da uva vinho vive
Ao nus óleos dos sábados
às noturnas engrenagens que fabricam domingos
à extinção do sal
ao simulacro branco
POEMA AO LEITOR
Leitor, faça alguma coisa, tome um conhaque em riste
desista de conhecer o poema, beba-o, morda-o
com dentes parmenedinianos úmidos
liberte as grades do desejo
incinere dores e pássaros
faça voar a gaiola sem voo dentro
varra também o tapete (com o poema
a água do banho da gramática jogue)
para bem longe do lixo, amamente
bois mecânicos, abismos, galos coesos, mitos
manipule pêsames brancos, ossos de baunilha
liças de abelhas desafil, enfrente pusilânimes
fabrique lenços para adeuses provisórios
com lágrimas incluídas
incite máscaras de lástima e nuvens
para dias de nojo ou enjôos sujos
corteje a sombra dos gasômetros
extinga cotonifícios, alimente precipícios
erga a chama farmacêutica, o óbdo sublingual
blinde esperanças e mansões, mas
não deixe nunca cair da mão esquerda
a bandeira esfarrapada do poema
(e nunca o abandone
em meio a um aparente sem sentido
que beire a página do seu lábio.
Busco arquétipos de teu olhar no céu azul
e nas revoltas águas do mar teu rosto perdido
(cavalo que alimentou o páramo
canção que contamina harpas)
e na íris incansável do abismo
e nas gemas enterradas nos milênios
nas artes ópticas dos felinos
embuçados nas noites do sertão
nas velhas canções dos marinheiros
e nos versos de mortais cantorias
busco teu nome, reflexo do que és, vida.
Lavra o céu de relâmpago duro fragor
arde trêmulo infinito em luz e rumor
brilha a escória, gemas consomem
o carbono das estrelas
esgrima o infinito com a eternidade
na liça da realidade
sob pálio de uma tarde terrestre.
TERCEIRA VISÃO
No caos aporta
Naves de sombra
Tremulas auroras.
II
Laços vazios, baços abismos
de água e musgo habitam
a alma baldia.
DUETO
Brilha palpitante entranha
do trêmulo mármore
vísceras da sombra esplendem
Rumor de aurora escande
a alegria da água noturna
o esplendoroso abismo de ouro e grito
no intestino das estrofes
refulge as pratas da náusea
rugem as convulsões do vômito.
TERMOR DE MÁRMORE
Deixo-te, querida, o quanto tenho vivido
dias que virão, dias já mordidos.
Nem sempre a sombra vem de alguma dor
nem a tristeza de criptas ou lápides escuras.
Ninho de galáxias, que pássaro
cósmico o prepara?
LEGADO 3 X 2
No inferno correm rios sólidos
pelo sangue dos culpados enraivecidos
pela ira das catracas subjugados
cavalos eclesiásticos lá pululam
cujos freios são a mitra da loucura
e os arreios cajados acadêmicos.
Tramitam piras, crateras regorgitam
ardem canoros escombros, orgasmos ungem
triunfos podres comlegendas inglórias.
No inferno céu é dura
ilusão de súcubo
dávida do esquecimento
incunábulo
pútrida banalidade.
Às platéias condoreiras ofereço
flébeis vislumbres, torsos de virgens
músculos de avestruzes e febres
idílios de albatrozes e potes de vinagre
além de caixas de Viagras.
A todas as vozes úmidas
A todas as volúpias vândalas
a todos os verbos lúbricos
a todos os lumes cegos.
Às pálpebras do sal, obra branca
aos sábados tímidos e longes.
Aos ditirambos de outubro
às álgebras lascivas do seio.
MICHAUX MORTO
- A solidão inspira ratos.
Sou calcante e adivinho
- Filho de Anfiaram, irmão de Anfíloco.
Fossem queimar-se toneladas de livros
volumosa e falsa poesia
que se publicam anualmente no Brasil
- e o fogo eterno seria insuficiente.
- Das cinzas dos impérios erguem-se raposas.
Sobre a cova anônima dos heróis
- Tranqüilas baratas transitavam.
As joialheiras de Paris ficaram nostálgicas
silêncio assomou às sacadas
estendeu-se às calçadas ate à extinção.
Gares fumegaram.
O Sena vomitou borbotões (e cargueiros
que transportavam cinzas de heróis antigos).
A náusea apossou-se dos sulevares
Adormeceram nos molhos talismã.
Manhãs não mais se prometiam
O sol se recusou a sair.
- quando Michaux morreu.
4 POEMAS
Todo maníaco é lírico
todo solitário eleita.
É de ao todo cansaço.
Máscaras antiqüíssimas de prata erodem-me
conservam meu rosto solar e mudo ereto
orgias erguem-se, ocupam-me o espírito (confissão).
Palavras foram feitas para ocultarem
e não para revelarem nuas o pouco das coisas.
7 POEMAS
Os que portam tirsos são muitos
- poucos os possuídos por Dionísios.
- Todos devemos galos a Asclépico.
- Vide bula vide bulimia.
Bursáteis lipídios nas veias dos cadáveres
Fazem subir a cotação dos cemitérios
- (e aumenta a locação de velórios irresistíveis).
Banido do Olimpo Apolo
no exílio hiperbórico
vá lágrima de âmbar vertia
- Nostálgico do éden grego.
- Tem o nome de ambrosia.
Nas águas curvas da vida
Lariço dúvidas e redes
- Fisso peixes e certezas.
MAIS 7 POEMAS
- Sândalo para a pira de Savonarola em Ferrara.
Clama o papa por mais desgraças
- A corte angélica faz ouvidos de pescador mouco.
A alvorada está morta. Tons pastéis disputam
- o enterro da aurora.
Aurigas estrangularam estátuas de dois cavalos
- No estábulo onde nefestos soldava uma quadriga.
Féretro noturno. Treme o amanhecer.
Beija-flores amordaçados vêem rouxinóis morrerem
- Estrangulados por monges Donachões, hortelãos orgânicos.
- Alcatéia de silêncio estraçalham células de grito.
- Monges abraçados a cilícios amontoam-se na lua.
Ao sentido das cores iconoclastas
e às essencial obscuridade das palavras
(que por reflexo ou instinto de sobrevivência negam
o último sentido aos poetas, e detestam
os que exploram suas fragilidades dicionárias)
Aos cães de Florença
aos manicômios da Baviera
aos cafés parisienses da margem esquerda
Às graças nômades
aos beijos beduínos
às almas desertas
Aos cânones das ruas
ao sarcasta
à catarse, ao escárnio.
À ESSÊNCIA NUA DO TROVAR ESCURO
O poema acontece. A imagem brota do nada ao encontro da palavra em jorro breve, largo, lépidos flashes crassos ou puros, mas descontínuos e lassos, adjetivos.
O poema não nasce classicamente, não é a recolha de uma messe de letras, algo que vindo em semente se assemelhe a um fervor agrícola, a um molho de semestres cereal do verbo que plantado e mirja (pão undécimo) sob égide de uma estrutura, vôo de baunilha sob pálio de uma história, esquema hábil em aritmética e música, partida dobrada de emoção diurna como soi ser “poemas despoietizados”.
Acontece, súbito relâmpago, voragem
que escurece o jugo das palavras
presa do dínamo narrativo, catraca do sentido
o poema acontece sob trilhos próprios do tempo
descarrilha antes de sujeitar-se à estação da gramática
nas rédeas insolentes do inútil e da intriga perde abrigo, ganha refúgio, no tugúrio do sintagem desconexo habita, nas minúcias de um espaço passivo inacabado sempre, demoníaco, talvez imóvel (semovente) como um sino antes do primeiro repique.
O poema surge e ressurge e incorpora-se à passagem do tempo como a lava de um vulcão à geografia do olho encarna-se na passagem do fruto como a boca no mundo. emerge dado, acontecido, fato de palavras construído por parcas porfiosas tecido, por gestos irremediáveis alinhavado, Penélope e Penélope, o tecido do inverso vertido fruto da epifania do verbo do projeto da página concebido.
Vêm os poemas do repúdio da suspensão do temos da carne do incomunicável (do comunicável não é preciso) fluem do imanente, mas desprezam talvez o contudo e toda a transcendência do palavroso abominam.
Do frutífero inconsciente, do prolífero critério de imagens suínas (e grupais inclusive) é fruto também.
Adota o infecundo e a intempérie como símbolos e as carnes da prosa para sua fome metafórica.
O poema erguese de um reservatório de escombros de uma legião de dores, de um cesto de torsos arcaicos de uma usina de sombras fecundas e dínamos solares para a claridade da palavra, para o foco da essência, íntima, vasta.
Advém o poema de uma zona cega (ponto morto) perigosamente impura, entranhadamente nua.
Vem a poesia ao poema em fragmentos de mundo (que o obus da palavra deteriora e salva), em forma de olhar de temores, de dias sonâmbulos, de vazios intensos.
A poesia depende do silêncio açulo do poeta que fazer-se em poema arrastar-se até a página, leito ou útero de sua rebentação angélica.
O poema vive às expensas de porfios Ariadne fricativa, fina frágil, sílaba de fonte e mistério, guia e amoroso caminho, indefesa luz, abandonada gema.
Se o poema não tem a aparência do que vem feito sua essência é falsa ou fabricada por máquina de prosa.
O poema é dinamizado por musas atadas (deuses estanques) ao subconsciente do mundo, à inconsciência da coisa que o ilumina, rebusca, rubrica, denuncia ou afoga.
Todo poema é sonâmbulo sob pena de ser narração do nada, doença do sono, dor da vírgilia, artifício da alma.
(Se o poema não passa da página em branco, publique o mundo cerne por ratos urbanos, suicide-se com o alfange da palavra).
Mas nunca diga que o poeta é um fazedor de signos cegos artesão de metáforas encaixotadas em urnas sonoras em diapositivos de música ou um reles fingidor do mundo de que se demite.
OBRA POÉTICA DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO
ÉDITOS
Título Provisório – Natal-RN
Poemas com Endereço – Recife-PE
Burocracial – Edições Pirata – Recife-PE
Gesta Pernambucana – Recife-PE
Coração de Areia – Fundarpe-PE
50 Poemas escolhidos pelo autor (em homenagem a Simeão Leal)
Editora Galo Branco Waldir do Val – RJ
Só às Paredes Confesso – Edições Bagaço – PE (1ª e 2ª edições)
Palpo a Quimera e o Tremor – Edições Bagaço-PE
(A Cimitarra e o Lume – Recife-PE (fora do comércio)
Bando de Mônadas – Edições Bagaço
INÉDITOS
Cem Ditames de Amendoa (on-verse-poemas)
Simulacro seguido de Escuras
Frases da Lua
Atanor
Grifo meu
Gide ou o Desejo
Livro Jogado Debaixo do Tapete
Haicais Heterodoxos (Flauta de Pássaro)
Relógios Moles
ENSAIOS
Jorge Luís Borges – Leitura Escrita e Traduções
Visão Pontual de Poetas Pernambucanos (2003/2009)
DOM
A noite é um dom (feérico ou escuro)
janela para ler estrelas, olhar a alma
ou apenas mais uma teia
que o viço da treva enleia?
FATOS NUS
Rosas provocam lascivas abelhas
(a orgia do néctar dilacera quelicéras de aranha)
cavalos atropelam magnólias
na hara do jardim.
Enquanto crisântemos se desesperam
generais de jaspe preparam
estratagemas de nojo.
Minerais batalhas de náusea
rumor noturno desata.
CONSTATAÇÃO INELUTÁVEL
Lua dilacera entranhas
Sino rói campanários
A hora alicerces.
SEIS POEMAS IN EXTREMIS
Sua boca títere trâmite de formigas
seu coração burocrático monocórdico.
Vis lascívias vias
no ventre da reentrância.
Vago olho do horizonte.
Abutre intacto o coração.
A cor da extrema-unção é rosa pálido.
Nada mais exato do que a fantasia.
DESMAIO AZUL
No trêmulo crepúsculo
na tina de cores mortuárias
azul desmaio.
A POESIA
vê o indizável.
A poesia precisa ver o invisível
para dizer o indizível.
GRAFFIT DE TURIM
Deus está morto (Nietzsche)
Nietzsche está morto (Deus).
POESIA
Que é a poesia senão o poder da palavra
a forma absoluta dessa soberania na página?
E não regras anacrônicas e antignadas marcas
Sólidos selos de impotência
de nossas trêmulas certezas!
Derrames na lauda branca
de inspirações mecânicas.
Artifícios sem sonho delírios domados.
Verdade da alma no filtro da tinta estampada.
SEIS DÍSTICOS DE MAIO E UM TERCETO
Vão-se os dedos que são carne
ficam-se os anéis de brilhantes.
As mãos da primavera
amuralham de pássaros
castelos de açucena.
Um gazel de Hafiz vale muito mais
do que mil antologia de amor.
Que o longínquo eco da canção seja
bálsamo, sumo da vida, ébria bebida.
A glória é de mortal porcelana
o trono de imitação de barro.
Nos pátios côncavos em horas tortas
à sombra de hospícios curvos
Lua espreita rua
uiva a lobos urbanos.
CIÊNCIA
Sei que águas levarão meu rosto
às sarjetas urgentes do sonho
e sei que os detritos do tempo
embelezarão o abandono.
CAPUZ DE DÚVIDA
Aos touros metafísicos
à lua, aos mares, às mulheres
à morte vasta e destra
ao epicurista que escreveu Eclesiastes
aos anjos industriosos do paraíso.
Mar da manhã harpa estendida ao sol.
A lua cai do equinócio no capricórnio.
Dança Gaia no céu esponjoso
balé espiralado e leitoso das estrelas.
Via Láctea leite fluindo do seio da deusa.
Todas as verdades têm seus véus.
SE
Se choras pelo sol posto lágrimas
não te impeçam de ver estrelas.
GOSTO E APETITE
(da canina educação)
Poemas escritos em biscoitos
ávidos cães vadios devoraram
numa demonstração de bom gosto.
RETORNO ETERNO
Nada se perde, tudo se come
nada se fixa, tudo se move
Suínos cevam-se dos cadáveres dos homens
que se deliciam com linguiça
de intestino de porco.
ESSE ÁRDUO GRITO DE CARNE
(poema ao olhar a lua do seio)
esse árduo
prisma noturno
teu olhar longo
declara
esse vale de prodigiosa carne
entre montanhas macias
minha boca ereta
(as mãos deslumbradas)
denuncia.
A NOITE CÉU
Quando a noite se estender contra o céu
como paciente anestesiado sobre a mesa
estarei carpindo Terra Devastada.
Restaram do ósseo holocausto da alma
do banquete dos símbolos restaram
alguns úmeros tíbios
dois cúbitos ínvios
túnicas efêmeras
fêmures arruinados.
A essência da poesia chega
às hélices vivas reluzentes
nela incrustadas
chaves do passado
cápsulas do futuro.
DIVA TAREFA
Tarefa dos servos e cravos
romper ligamentos dos punhos vassalos.
Jesus multiplicará multidões
para alimentar peixes.
Multidões com uma só cabeça
para só um fecundo golpe de adaga.
O tempo também corre contra os reis.
e não veias dos místicos embarca.
RELÓGIOS MOLES
Catracas se roeram
relógios morreram ontem
liquifizeram-se
(morte por água e por decurso)
moles derramaram-se
(mar de sinos mortos, fundição do tempo)
pelo ombro dos homens
alastrando-se
sobre olhos atemporais
metalúrgicos galos
intimoratos búzios
se calaram.
DESEJO
Dos lábios ardentes do Profeta saltem
salmos como peixes da água.
ÂNGELO
Sobre os ombros hercúleos (orco)
do Atlas florentino ergue-se
a cúpula de São Pedro, pedra
e o grito que da nave voa
espírito do homem abriga
na carne da hora ecoa.
PEQUENA E LÚBRICA HISTÓRIA TAURINA
De novilha do templo
da campina se finge
taurina unção recebe
sêmen divo e potente
entre êxtases extremos
gera o mito e o ser
o fruto minotauro
um homem metade touro
um touro metade homem.
Jovens, fluidos, quase metafísicos
leves como zéfiros
alados acrobatas de Cnossos
dançam sobre touros
atados a seus córneos
nos domingos cretenses
à tardinha.
Os chifres do touro
semelhantes a luas crescentes
os pátios do Labirinto clareiam.
7 POEMAS DE ÊXTASE
1
de que se nutre
esse incêndio
que não debelo
e se alastra louco
pela noite do corpo?
2
vinho extinto o amor
taça vazia
a um brinde
de solidão se oferecia.
3
seios: rijos
deuses redondos
para o culto
alpino das mãos, pouso
da ave dos lábios
seres binários
de pele ágil
para a sede tátil
dos dedos
para a fome
decimal dos desejos.
4
seios: sinuosos
mistérios róseos
canções de carne
que mordem a boca
e encantam
a alma da mão.
5
morderei em fúria
fruto púbis
até que cesse toda sede
que viver dos lábios.
6
casta chama do seio
incendiará a mão.
7
o fluir
de todas as fontes
do amor
nascidas do teu corpo
que freme infinitamente
flagrei.
BREVE DIA ETERNA NOITE
Vão-se as rosas dos anos
ficam os dedos noturnos
e o rastro dos desenganos.
Desfolham-se as faces
o rosto não é mais máscara
que o viço relevava.
É força que não guardes
frutos além da puberdade
e nunca os sentidos mascares.
(Acicate o desejo, torne-o mais vivo
pula-o com a lupa da carne
faça-o iluminar o espírito).
É força que não deixes
a estrela do olhar morrer.
Nem um dia dura o esplendor!