02
Sáb, Ago

destaques
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Este poema começa na página quatro.
As três primeiras (e a zero) perdi-as 
quando transcrevia do borrador da alma escura
para o branco (quase angélico) do papel.


A consolação (havida?) gasta a verdade.
O improvável rasteja
ante qualquer impossível (ou possível?).

Na mesa legista minuciosa
(entre trâmites velhos
e abusados ritos vencidos
e burocráticos gestos)
cheias de aspas
e hífen interrogativos
ouvem-se (ou havem-se?)

só rasgos de seda
(da seda inusitada do hímen intacto).

Mas a seda
rasgada chora.

Porque todo constrangimento ri
(mesmo sendo inconstitucionalíssimo)
e qualquer lascívia é vera. Ou veda

fática, valorosa, pueril.

A desinteressada astúcia da leitora vence.

Porque a beleza é sempre bizarra. (Não é difícil).
E nasce de qualquer parca leitura.

(Pergunte a moira 
se V. não se entende com a escrita 
leitor dependente).

Que luz frágil do acetileno lento
desanuvia.

Tudo parece vestido de branco maculado
ao meio-dia. Só a alma (está nua como o rei)
é escura e fria
(como tecido de gelo assaz).

Doo cavos passos surdos 
e uivos nus 
a quem me lava (a alma parda).

Pois assim é a vida poeta vital. 

(Ao fim dessa sétima página
- na contagem original, sinto-me
iníquo unicamente inócuo.

(E porque inocuo em mim algo iníquo
ou porque iniquo em mim todo o inócuo?)

Os braços do sobretudo que Álvaro 
emprestou de CDA eram vesgos.
E não erradios. Mas ásperos.
Incompletamente longos.

Ante fatia branca de tempo estanco
a fome. Paro. Urdo. Engulo. Animo-me.

Prestes a ansiar 
e haustos prenhes de suor verter
rosto acima, testa abaixo, estou.

(Arranco cuidadoso e estéril 
da leitora impotente
hímen asséptico. E oculto. 
Pois os mortos também não amam. E não mais suam).

Sobre o vidro fosco do caixão debruçado vejo 
que sou seu conteúdo iníquo. E real.
Vendo-me assustado e frio
(quase comovente?)
educado olhar lança-me e improvável 
o cadáver envidraçado. (De olhar goro).
Agastado, vítreo, profundo cadáver.

Lanço soslaio e fujo.
Luta e fuga em mim dão-se as mãos.

(Eu ante mim mesmo do outro lado
dentro e fora do caixão último).

Sinto-me mais complacente
- e menos hímen
do que antes (ou ontem).

 

Murilo Gun

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