03
Dom, Ago

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            “A poesia moderna brasileira tem,como força recorrente, o resgate da identidade cultural. Daí, revestindo muitas vezes a perspectiva crítica em face da realidade e o permanente direito à pesquisa estética, o conteúdo regional, o traço folclórico e os aspectos locais.

Tudo seguindo à risca as exigências dos postulados estéticos do ideário modernista. A palavra poética de Oswald de Andrade, de Menotti del Pichia, de Ascenso Ferreira, de Jorge de Lima e de Cassiano Ricardo, dentre outros, serve para ratificar nossas afirmações. No entanto, se o trabalho artístico se projeta em função dos materiais telúricos e do historicamente descantado elemento nacional, não se obstrui a passagem do fluxo lírico de raízes metafísicas e de tendências universalizantes; não se renega a poesia marcada pela preocupação social e pela tônica política; não se intimida a experiência, fortemente contemporânea, dos labores metalinguísticos. As presenças gigantescas de Carlos Drummond de Andrade, como nascente desse rio, e de João Cabral de Melo Neto, como estuário perene e margens férteis, consolidam definitivamente o discurso poético da modernidade no espaço da literatura brasileira. Com eles se forja uma tradição que as vanguardas, embora não a esposando de todo, reconhecem na prática-aprendizagem de suas primeiras lições; a tradição que se erige numa segura consciência da linguagem traduzida numa poética do ser, do dizer e do fazer, em síntese estética. Entre o lírico, o épico e o metalingüístico. Também o culto da palavra e a obsessiva procura do seu despojamento; o respeito ao verso no seu alongado entre o mágico e o mítico e a irrigação continuada do veio imagético consumada na exploração do terreno metafórico e metonímico. Desta estirpe, sem precedentes na história de nossa lírica, advém a experiência singularmente original e marcada de silêncio e solidão do poeta pernambucano, Vital Corrêa de Araújo”.

             “Em BUROCRACIAL deparamos com os eixos fundamentais da poesia moderna e contemporânea. De um lado, o explícito enfoque crítico dos universos referenciais, quer das miudezas cotidianas, quer dos recônditos insondáveis da vivência humana; de um outro, o corte vertical no trato da visão filosófica em perfeito cotejo com a prospecção nos meandros da linguagem poética. E, tonalizando as cores do social, do metafísico e do metalinguístico, rápidas cintilâncias líricas e os salpicos incontidos da mais fina e velada ironia. A primeira parte, com título homônimo ao da obra, resgata, não somente as aparências burocráticas da vida-funcionária codificada em padrões expressivos e em clichês terminológicos despidos de qualquer significação verdadeiramente humana, mas, sobretudo, a monstruosa reificação das relações entre os homens. Numa linguagem extremamente contida, econômica, bem talhada, o poeta compõe, verso a verso, o enorme embrião das mínimas agonias:

 “penetro / com olhar perito / as partes íntimas / do corpo petitório / vou ao sexo do pleito / ainda impúbere / disseco / com olhar apunhalado / as vísceras da petição / analiso / a anatomia dos fundamentos / os alicerces do requerido / e as fraturas / das razões expostas...”. E, neste diapasão, temos, confeccionada, a mais pungente radiografia da rotina burocrática”.

            “No poema “Os seios”, a primeira estrofe confirma: “Ciumes de carne sem metáforas / rijos deuses redondos / para o culto alpino das mãos / pouso da ave dos lábios / seres binários de pele ágil / para a sede tátil dos dedos / para a fome decimal dos desejos”. Em “Morracidade”, (a terceira parte), a problematização poética da solidão metropolitana vai desvelando cada vez mais a consciência social do artista. Esta atinge o auge em “Pederna”, através de raro equilíbrio entre senso de forma e escolha de substância. A crítica social é densa, mas não atinge o nível rasteiro do discurso panfletário. Finalmente, “A cimitarra e o lume”, (última parte), onde o poeta, sem descurar dos motivos anteriores, mais organiza a sua ideologia do verso e do poema. Aqui, inteiramente centrado nos limites da modernidade, garimpa a palavra em suas múltiplas possibilidades semânticas e estéticas. Perquire sobre o sentido do verso, a significação da poesia, e projeta a palavra poética entre a fantasia da sensibilidade e o suor das armaduras técnicas: “um poema em água e areia/ talhado à mão e ao sonho seco / pelo esteta de fomes e sedes/ (do barreiro veio o barro/ da mão, a imaginação / e o seco sopro agreste/ sagra e cresta a vida/ bonecada antes de ser plantada/ colhida antes de ser espiga)”.

“A poesia de Vital Corrêa de Araújo não só se destaca no território pernambucano. Pelo toque de inventividade que revela e pelo zeloso apuro formal, fura fronteiras. Merece lugar de razoável proeminência no cenário da lírica brasileira”.

             Fragmento do texto crítico publicado no jornal O Norte, da Paraíba.

 

Murilo Gun

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